Resumo: Artigo 36310
Células-Tronco considerações sobre o regime de verdade e o regime de esperança (29,57,92)
Iara Souza, Universidade Federal da Bahia, Brazil.
Apresentação: Friday, May 30, 2008 1:15PM - 3:15PM sala 210 - UNIRIO VII ESOCITE - Sessão 55 - Chair: Debatedor a Confirmar
Abstract.
A tecnologia está no cerne da medicina contemporânea. Nada mais natural, portanto, que ela se torne objeto de reflexão. Na área de saúde usualmente esta questão é vista sob a ótica da avaliação de tecnologia, que utiliza como principal critério de julgamento a relação custo-benefício de um determinado artefato tecnológico em comparação com outros tipos possíveis de tecnologias. Esta é basicamente uma abordagem gerencial, que visa otimizar a relação custo-benefício e subsidiar a elaboração de padrões de uso de tecnologia. A despeito de sua importância, esse modelo é insuficiente para dar conta de várias dimensões presentes na medicina e que dizem respeito também ao seu vínculo com a tecnologia. Primeiro, como argumenta Good, é preciso reconhecer que medicina faz uma mediação entre fisiologia e soteriologia. Ela não trata apenas do corpo medicalizado, mas em sua prática estão presentes dramas morais, sofrimento, medo e morte. Assim, por mais materialista que seja, a medicina acaba reunindo os domínios moral e material. E, se atentamos para a sua face soteriológica, podemos compreender certos aspectos da prática médica que de outro modo ficam velados, como a linguagem da esperança, que está presente nos discursos sobre várias doenças que limitam e ameaçam a vida. De fato, a medicina parece estar tensionada entre duas lógicas aparentemente díspares: regime de verdade e de esperança. O regime de esperança é caracterizado pela visão de que novos tratamentos estão sempre por vir. Há uma confiança nas promessas de cura miraculosa para doenças severas, em nome disso os alinhados a esse regime lutam por financiamentos, aprovação de pesquisas e pela estabilização de terapias controversas. O regime de verdade, por sua vez, se caracteriza por um investimento no que é positivamente conhecido, mais do que no que pode vir a ser. Ele é condizente com a abordagem gerencial e concebe a maioria das terapias médicas como menos efetivas do que se costuma afirmar. Se há uma tensão entre esses dois regimes é preciso considerar que há conflitos de diferentes tipos: políticos, éticos, econômicos etc. E a noção de eficácia, exclusivamente, não explica a força e poder de penetração das novas tecnologias. Tampouco é suficiente dizer que o mercado introduz forçosamente seus produtos a consumidores passivos. Não há um fluxo direto que conduz uma inovação diretamente do laboratório para a clínica. Os usos de uma tecnologia são definidos e redefinidos por cientistas, médicos, pacientes, associações de doentes, políticos, gestores, agências reguladoras, empresas de biotecnologia, farmacêuticas, grupos religiosos etc. Alguns desses atores se engajam diretamente nos debates públicos acerca da viabilidade, da desejabilidade e dos resultados de tecnologias. Tal fato nos mostra que a ciência, longe de ser um domínio distante da política, pode se apresentar como instância de engajamento político. Examinaremos essa questão através da análise de notícias publicadas (em jornais on line, principalmente uol e estadão) no período de tramitação no Congresso da lei de Biossegurança. Trataremos aqui do debate acerca do uso de embriões em pesquisas com células-tronco. Os aspectos éticos da questão eram os que suscitavam mais polêmica. De um lado se posicionava a Igreja Católica e grupos religiosos contrários ao uso de embriões, pois consideram que uma vez que há concepção, há vida e alma. De outro, estavam cientistas e associação de pacientes ou familiares de portadores de doenças que potencialmente se beneficiarão do avanço das pesquisas com células-tronco. O debate bastante intenso implicava em definições distintas de vida humana e de quem devemos privilegiar: os embriões ou pacientes que sofrem de doenças incapacitantes e/ou mortais. A discussão, fundamentalmente ética, resvalava também em questões técnicas sobre a diferença entre o potencial das células-tronco embrionárias e adultas. A despeito das diferenças entre os princípios que fundamentavam as escolhas de cada grupo, havia um consenso em torno do potencial terapêutico das células-tronco. As notícias sempre relatavam experimentos bem sucedidos com ratos ou com células cultivadas in vitro. Raramente questões de risco ou das possibilidades de insucesso eram postas. Apesar da fala cautelosa de alguns cientistas, não se duvidava de que aquilo que funcionava bem para ratos e culturas de células poderia servir para tratar as pessoas. A todo momento se sugeria que o tratamento com células-tronco poderia ser a saída para várias doenças diabetes, Parkinson, etc. esse aspecto era ressaltado sobremaneira pelas associações de doentes. Entretanto, não havia clareza quanto ao modo como se procederia no tratamento e como seria o acesso a ele. Ao fim e ao cabo, a lei acabou aprovando apenas o uso de embriões que estão há mais de três anos em clínicas de reprodução assistida. Logo em seguida o MCT divulgou um edital para financiamento de pesquisas com células-tronco. Uma das conclusões que podemos extrair desse caso diz respeito ao vigor do regime da esperança, no momento em que se toma uma posição decisiva sobre o uso de uma nova tecnologia em saúde. Em especial para aqueles que sofrem com alguma doença incurável e de difícil manejo qualquer notícia sobre sucessos obtidos em experimentos significa um alento, uma esperança de cura, mesmo que o êxito não seja plenamente garantido. As evidências necessárias para manter a prontidão e as expectativas dessas pessoas podem ser muito escassas e frágeis. De fato, a sustentação ou vitória de uma determinada posição em uma seara de controvérsias parece depender menos de evidências muito firmes do que da articulação política de grupos que se mobilizam para a sua defesa. Atentar para esses processos é de extrema importância no presente quando há um crescente estímulo ao debate público acerca da ciência, que conduziria a uma redução da oposição a mudanças tecnológicas e à formação de um consenso em torno destas.