Marcia Oliveira Moraes
Doutora em Psicologia Clínica – PUC/SP
Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da UFF
Publicado em: MORAES, Marcia Oliveira. O conceito de rede na filosofia mestiça. Revista Informare, v. 6, n. 1, p. 12-20, 2000.
Resumo: Esse artigo visa discutir o conceito de rede tanto na filosofia mestiça de M. Serres quanto na antropologia das ciências e das técnicas proposta por Bruno Latour. O conceito de rede é o fio condutor de uma filosofia da ciência – proposta pelos dois autores – que trata a ciência como bricolage, prática díspar e heterogênea.
Palavras-chave: rede, ciências, filosofia das ciências.
Se aceitamos o convite de Latour e analisamos a ciência em ação, aquela praticada pelos cientistas no interior de seus laboratórios, somos conduzidos a um domínio de ação díspar e heterogêneo que não está contido nos estudos epistemológicos sobre a ciência. Porque à epistemologia interessa definir a ciência a partir da sua produção conceitual. E, nesse caso, a análise das ciências se vincula a uma pesquisa no campo do conhecimento. A proposta de Latour, ao contrário, coloca em cena elementos díspares e heterogêneos, tais como um dispositivo experimental, a rivalidade entre um filósofo político e um filósofo experimentalista, enfim, a natureza e a sociedade. Esse procedimento traz para o campo das ciências uma heterogeneidade de elementos e conexões que ultrapassam as delimitações epistemológicas entre o que é da ordem do conhecimento e o que não é. Se do ponto de vista epistemológico a ciência se define pela especificidade de sua produção conceitual, do ponto de vista de sua prática a ciência se define por sua bricolage, isto é, na prática um cientista não cessa de misturar elementos heterogêneos. Como uma das facetas do pensamento moderno, a epistemologia estuda as ciências com a preocupação de estabelecer cortes, rupturas entre o que é científico e o que não é. Em última instância, a epistemologia analisa as ciências tomando como referenciais as noções que orientam o pensamento moderno: sujeito e objeto, natureza e sociedade. Partindo de tais noções, a epistemologia acaba por se deixar guiar por uma crítica das condições de possibilidade do conhecimento científico.
Analisar a ciência em ação nos conduz a um domínio de ação díspar que alarga o foco de investigação. Se a prática científica não se define exclusivamente por sua racionalidade - ou por sua produção conceitual - mas por sua bricolage, então somos levados a perguntar sobre as suas implicações filosóficas. Porque, é certo que uma filosofia fundamentada nos ideais do pensamento crítico ou moderno - ideais de normatização e purificação - não dá conta das ciências; uma filosofia, em suma, de um modo ou outro, comprometida com a tarefa de purificar num fenômeno o que ele tem de puramente objetivo, ou o que ele tem de puramente subjetivo. Estudar a ciência em ação nos leva a um universo filosófico que não se confunde com o paradigma dualista típico do pensamento moderno. Como a ciência em ação se movimenta num mundo cuja realidade é múltipla, um mundo de conexões e elementos díspares, então precisamos buscar uma filosofia que faça da bricolagem, da mistura entre sujeito e objeto o seu ponto de origem. Não se trata mais de uma filosofia que se constitua a partir de uma crítica, de um esclarecimento das condições de possibilidade do conhecimento científico. Trata-se, sim, de uma filosofia mestiça, híbrida que se refere “à análise e à retórica juntas, aos mitos e às religiões, às técnicas e às ciências, ao mestiço incluso.”[1]
Do ponto de vista topológico, uma rede é caracterizada por suas conexões, seus pontos de convergência e bifurcação. Ela é uma lógica de conexões, e não de superfícies, definidas por seus agenciamentos internos e não por seus limites externos. Assim, uma rede é uma totalidade aberta capaz de crescer em todos os lados e direções, sendo seu único elemento constitutivo o nó. As redes tecnológicas, como as redes ferroviárias, telefônicas e informáticas são, para Latour[2], apenas um caso particular, um exemplo da noção de rede no sentido ontológico e radical que ele lhe confere.
No sentido que lhe atribui Serres[3], a rede é mais do que um conceito topológico: ela é ontológica. Talvez pudéssemos dizer que Serres expande na direção do real o sentido topológico da noção de rede. Na perspectiva do filósofo, uma rede é formada num dado instante por uma pluralidade de pontos ligados entre si por uma pluralidade de conexões. Por definição, nenhum ponto é privilegiado em relação a outro, o que faz com que uma rede tenha múltiplas entradas. Serres nos faz ver que essa rede irregular, desigual está na gênese das regularidades. Em outras palavras, as chamadas redes regulares marcadas por pontos privilegiados são um caso particular da rede escalena, irregular na qual é possível o máximo de diferenciação interna. Com esse argumento Serres mostra que as oposições binárias, caracterizadas por possuírem apenas duas entradas privilegiadas, são elas próprias efeitos da rede irregular. Tal é o caso do pensamento dialético, uma vez que, segundo Serres, ele é unilinear e caracterizado pela unicidade e simplicidade da via que liga uma tese a uma antítese. O modelo da rede, ao contrário, é marcado pela pluralidade e complexidade das vias mediadoras; não há um caminho logicamente necessário. O modelo tabular da rede toma, portanto, a pluralidade como um substantivo, e não como um atributo, isto é, não se trata de acrescentar um fator de variação e desvio a um campo já marcado por caminhos privilegiados, como aquele da tese e da antítese. Por isso, conclui Serres o modelo da rede “não é, de direito, redutível a um tecido complexo de seqüências dialéticas múltiplas: este tecido é apenas um caso particular”[4]. Uma rede é um campo heterogêneo de tensões que não resultam necessariamente numa síntese enquanto o pensamento dialético é um caso particular da rede: ele reduz a tensão interna que lhe é constitutiva a uma luta contínua, numa direção única e constante.
No espaço irregular das redes, pode-se entretanto, destacar subconjuntos restritos e localmente organizados de tal maneira que os seus elementos se refiram mais a esta parte do que ao conjunto total. Estes conjuntos organizados formam agrupamentos e coexistem com outros agrupamentos do mesmo tipo, havendo entre eles uma forte interferência. A afirmação de que uma rede comporta uma pluralidade de subtotalidades é, para Serres, crucial: “ela dá lugar a uma aproximação mais detalhada, que as vulgares teses do local ou da legislação global, do atomismo epistemológico ou do enciclopedismo dedutivo”[5]. É importante verificarmos que uma rede implica variações, distribuições, desvios ocorrentes ora no espaço, ora no tempo. Seria mais correto afirmarmos, com Serres[6], que uma rede implica uma variação num espaço-tempo. Tomando como exemplo o jogo de xadrez, Serres mostra que, no espaço-tempo do jogo, as duas redes diferentes e diferenciadas que o compõem entram numa transformação, cada uma por si e cada uma segundo a transformação da outra. Na situação do jogo, é possível distinguir dois tipos de situação: as situações subdeterminadas e as situações sobredeterminadas. No espaço-tempo do jogo, “tudo sucede como se houvesse um preenchimento progressivo do conceito de determinação”[7]. As jogadas vão se realizando num gradiente de determinação, mas vale notar que, no modelo de rede, é possível variar o próprio gradiente dessa variação. Isto é, pode-se preencher esse gradiente de modo fulminante, lento, nulo, havendo casos em que se vai de uma indeterminação inicial a outra. “Não é pois tanto a primeira distinção entre dois tipos de situação, preparatória e decisiva, que é interessante, como as múltiplas maneiras pelas quais a situação de um conjunto passa de um a outro (ou por vezes não passa)”[8].
Longe, portanto, de ser indeterminada uma rede é o lugar onde a determinação é construída, negociada, ensaiada. Serres situa a rede numa certa distância tanto em relação a uma filosofia do aleatório quanto em relação a um determinismo unívoco. A primeira trata de afirmar uma pluralidade espacial, uma dispersão aleatória distribuída espacialmente, enquanto o segundo, exemplificado com o pensamento dialético, aceita a transformação desde que reduzida numa seqüência temporal e evolutiva cujo limite é a síntese. Dois extremos de uma cadeia que a noção de rede permite segurar: por um lado, dispersão espacializada; por outro, seqüência temporal sobredeterminada. Uma rede não se reduz nem a uma pura dispersão entre elementos no espaço nem a uma evolução temporal dos acontecimentos. Ao contrário, ela é o lugar de construção simultânea, do espaço e do tempo. No caso do jogo de xadrez, o espaço e o tempo são negociados a cada jogada, da mesma forma que a cada jogada é negociado o grau de determinação das outras jogadas até o xeque-mate sobredeterminado. A rede não é, portanto, indiferenciada, ela é o dinamismo das diferenças; há uma implicação recíproca entre rede e diferença. A rede afirma um real heterogêneo, uma experimentação ontológica. E vale ressaltar que, se a rede é o solo a partir do qual serão construídos o espaço e o tempo, isso não significa estabelecer um construtivismo no sentido kantiano, isto é, que parte de formas a priori para tratar da constituição do fenômeno. Na domínio das redes, construção é sinônimo de ensaio e de experimentação, em suma, a construção como vetor de devir[9].
A noção de rede traz à cena um tipo de causalidade que Serres chama de causalidade semi-cíclica. Como a rede é caracterizada por múltiplas conexões sem haver entre elas uma necessidade lógica, é possível conceber uma causa sem efeito, uma causa perdida, ou mesmo uma causa contemporânea de seus efeitos. A causalidade não é irreversível, ela implica uma retumbância do efeito na causa. Há uma série de perturbações, desvios, retroalimentações que reverberam sobre a causa. Por isso, o filósofo conclui que
“esta teoria da causalidade semi-cíclica tem aplicações extremamente numerosas e variadas. Tem a vantagem de aniquilar a irreversibilidade lógica da conseqüência e a irreversibilidade temporal da seqüência: a origem e a recepção são simultaneamente efeito e causa.” (Serres, M. s/d, p.15).
Assim, uma rede se caracteriza por sua heterogeneidade, tem múltiplas entradas, é a multiplicidade substantiva, a determinação é um gradiente, espaço e tempo são efeitos das suas tramas, a causalidade nela é reversível, e ela é caracterizada por subconjuntos restritos marcados por fortes relações de interferência entre eles. Numa palavra, na rede, “a complexidade já não é um obstáculo ao conhecimento, ou, pior, um juízo descritivo, é o melhor dos adjuvantes do saber”[10]. Uma ontologia em rede é o que Serres[11] nos propõe quando fala de uma filosofia das ciências.
Em seus trabalhos, Serres mostra como essa rede agita as ciências, desestabilizando seus domínios, fazendo-as derivar. Com um estilo muito singular[12] - talvez um estilo e uma escrita também em rede - ele descreve as fortunas e desventuras que as ciências humanas sofreram quando foram atravessadas por métodos e questões oriundos de outros domínios. Da história das religiões à lingüística, os objetos de estudo eram submetidos a uma estratégia de investigação que constava de seis pontos principais: “o tratamento por subconjuntos, o evidenciamento de elementos, o reconhecimento de operações simples e gerais, uma álgebra combinatória, a construção de modelos e a demonstração de invariâncias ou de estabilidades pela variação dos modelos”[13]. As ciências humanas estavam implicadas num paradigma cujo sentido geral era o de buscar uma invariância, uma mathesis universalis. O estruturalismo é, para Serres, a transformação desse paradigma num sistema cujo sentido geral é designado por um “conjunto que compreende elementos e [é] munido de uma ou de várias operações, invariantes de modelo a modelo.”[14] Esse paradigma funcionava como fio condutor, que em sua simplicidade, recobria todo o espaço do saber. Por meio desse canal, era criado uma espécie de repertório comum a partir do qual todos os estudiosos em ciências podiam se compreender.
Partindo da noção de rede, a filosofia de Serres constitui-se como uma revisão da modernidade[15]. Serres situa a filosofia centrada na imagem do sujeito legislador, filosofia inaugurada, segundo ele, na era cartesiana, como uma filosofia subjacente e comum ao empreendimento industrial ou à noção de uma ciência desinteressada. Nesse âmbito, a relação da razão com os objetos se resume à dominação e à propriedade. “A palavra-chave de Descartes resume-se na aplicação ao conhecimento científico e às intervenções técnicas do direito de propriedade, individual ou coletivo.”[16] O império dessa filosofia tem como conseqüência a perda do mundo, porque sob o seu império a natureza se reduz à natureza humana, em última instância, à razão humana.[17] Em resumo, a filosofia cartesiana promove o esquecimento do mundo em favor da razão humana. Assim, a concepção de ciência moderna é marcada por um princípio de exclusão do mundo, isto é, o mundo e a natureza são dominados por uma razão que lhe impõe suas leis, suas regras, os seus códigos. No entanto, a partir de dois focos principais, uma grave crise se abate sobre essa concepção de ciência: o primeiro com a termodinâmica e, o segundo, com as reações da natureza às intervenções da razão.
Em primeiro lugar, um imprevisto entrou em cena no século XIX: o calor. A termodinâmica foi certamente apropriada num acordo com o senso comum, o que fazia com que a diferença por ela atestada fosse tomada como uma diferença reduzida, anulada, controlada. Mas Serres resgata o sentido ontológico da noção de calor e considera o fogo como um acontecimento que coloca em evidência a potência da diferença: “o calor modifica as condições da matéria, perturba os edifícios moleculares, pesquisa o interior das coisas e o altera. O calor é anticartesiano e, para dizer tudo, antipositivista...”[18]. Sob o efeito do fogo, as coisas não permanecem intactas. O fogo afirma a transformação do objeto, mais do que o seu deslocamento num espaço homogêneo. A potência do fogo atravessa o saber, agitando-o do interior, afirmando o vigor da diferença. “Do mundo relógio passa-se ao mundo forno”[19]. O real é diferença, e não mecanismo, e o objeto do saber só pode ser entendido por sua multiplicidade, sua variação. As ciências entram em crise, o fogo agita do interior as classificações estabelecidas, as estruturas fechadas, as invariâncias.
Aquele repertório comum fundamentado em invariâncias é colocado em xeque pela prática diária da interferência, dos curtos-circuitos entre subconjuntos restritos. Aqui vale ressaltar que uma rede se caracteriza pela formação de tais subconjuntos locais, relativamente organizados e que mantêm entre si fortes relações de interferência. Essa noção de interferência é, a meu ver, crucial para a filosofia de Serres. Interferência entendida como um lugar de intersecção, de cruzamento e ressonância entre subconjuntos locais. Lugar de intersecção é sinônimo de lugar das mestiçagens. Cada ciência, aparece como um subconjunto em uma rede e, como tal, ela é agitada por práticas de interferências, cruzamentos com outros conjuntos, intersecções, mestiçagens. Cada ciência é atravessada, rasgada por um hibridismo cujo modelo é dado pela noção de rede. Parece-me que o conceito de interferência na filosofia de Serres implica a afirmação de uma mestiçagem sempre em operação no campo das práticas científicas, fazendo-as derivar, bifurcar - termo que, segundo o autor, “quer dizer obrigatoriamente decidir-se por um caminho transversal que conduz a um lugar ignorado.”[20] Enquanto na estratégia estruturalista está em jogo uma busca das invariâncias, na filosofia mestiça o foco das atenções está nas variações, nas bifurcações, na errância que caracterizam não só as ciências humanas, mas as ciências de um modo geral, bem como todas as nossas práticas. Ao falar de um mundo forno, Serres parece resgatar esse sentido de transformação ontológica que define o real. As leis, a cadeia, a ordem são exceções ou antes efeitos da potência do fogo ou, o que dá no mesmo, da potência da rede. É com rigor que Serres afirma a lei[21] como um aniquilamento da diferenciação, uma parada na variação que constitui o real. Isso não significa que se abandonem as leis, mas sim que a previsão baixe até uma relativa imprevisibilidade, ou dito de outro modo, que a previsão seja antes um efeito negociado em rede.
Em segundo lugar, um outro evento marca para Serres uma crise nas ciências modernas, centradas no exercício da razão: trata-se da reação da natureza às intervenções e dominações da razão humana. O império da filosofia cartesiana é mais uma vez questionado, porque, nela a natureza é reduzida à natureza humana, à razão. Na perspectiva de Serres, essa filosofia faz com que o mundo seja esquecido em favor da razão e no entanto, o domínio da razão sobre a natureza “cava buracos na vegetação, esburaca a camada de ozônio, expõe o mundo a grandes perigos...”[22] A natureza, até então considerada uma área livre para a expansão e domínio da razão, retorna, impõe questões e exige que um acordo, um contrato seja estabelecido levando em conta tais questões. É o próprio Serres quem afirma que “o aumento dos nossos meios racionais nos leva, numa velocidade difícil de calcular, em direção à destruição do mundo que por um efeito de retorno bastante recente, pode condenar-nos todos juntos, e não mais por localidades, à extinção automática.”[23] É uma reação da natureza impondo uma revisão das nossas políticas e das nossas filosofias.
Partindo dessas considerações, Serres, como Latour, opera uma revolução contra-copernicana quando coloca a hibridação no centro de suas análises. Ele nos convida a voltar às próprias coisas[24] e nós, com cautela e já de sobreaviso - porque outros já nos fizeram esse convite[25] e nos conduziram a uma consciência transcendental -, perguntamo-nos quais são as coisas em questão. Atento, Serres nos adverte que
“voltar às próprias coisas [significa voltar] às multiplicidades misturadas, às dispersões, tomando-as como tais (...) Restituir às coisas a totalidade de seus direitos, antes de intervir. Todas as nossas divisões e os nossos cortes, as nossas diferenças, as cadeias, as séries, as seqüências, as conseqüências, os sistemas, as ordens, as formações, as hierarquias e archês, são eleição, poder, arbitrário, o milagre probabilitário do historiador-deus, e devem ser dissolvidos, devem ser fundidos, devem ser misturados, como conjuntos móveis, no fogo an-árquico.” (Serres, M. 1988, p.178-9).
Revolução contra-copernicana operada por Serres: nem o sol, nem a terra se encontram no centro do mundo, mas sim as coisas ontologicamente definidas por sua mistura, sua mestiçagem[26]. “Corpo, músculos, nervos, sentidos e sensibilidade, alma, cérebro e conhecimento, tudo converge para esse lugar mestiço...”[27] Frente a uma filosofia crítica, marcada pelo ideal de purificação, Serres afirma uma filosofia mestiça, marcada por uma prática híbrida. A uma ontologia dualista, dividida entre o sol e a terra, Serres propõe uma ontologia monista da mestiçagem. O lugar mestiço não é, para Serres, um meio-termo entre dois pontos, entre o certo e o errado, o sujeito e o objeto. Ele é, antes, o mundo em torno de nós, é um meio que ocupa a totalidade do volume no qual vivemos. A filosofia de Serres afirma a inclusão do mestiço em nosso mundo, mestiço que fundamenta as nossas práticas, as nossas ciências, o nosso ambiente[28].
O ideal de purificação, ideal moderno, implica a exclusão do lugar mestiço, exclusão que deixa escapar a própria história. Michel Serres[29] mostra que, quando referido às ciências, esse ideal implica uma concepção de conhecimento científico que não se depara com a morte, com a violência. Ele toca nesse tema de diversas maneiras. Numa entrevista ao Jornal Le Monde[30], Serres afirma que Hiroshima foi o ato inaugural que o fez filósofo; a mesma afirmação encontramos na entrevista concedida a Latour[31]. O que significa dizer que a ciência ocidental não se depara com a morte e assim sendo por que falar de Hiroshima? Serres mostra que a história da razão ocidental encontra seu sentido num princípio de exclusão: os ideais de pureza e abstração são os seus fios condutores. A partir desses ideais a razão se constitui de modo repetitivo sempre se deparando com os seus a prioris. Segundo o autor, “o Ocidente começa com o problema do mal e trava contra ele um diálogo e um combate consubstanciais.”[32] A razão kantiana é a esse respeito exemplar. Nesse percurso, a morte, o sofrimento, o mal ficam excluídos em nome de uma atitude crítica que tem como alvo depurar as condições de possibilidade - condições a priori - do conhecimento. O ego transcendental de Kant não conhece o sofrimento. A ciência ocidental se constitui, ela também, a partir da exclusão desse lugar mestiço, híbrido de que falávamos acima. As categorias fundamentais dessa ciência advêm da tentativa de exclusão do mal, da morte, do sofrimento, são categorias tais como pureza, rigor, objetividade. O sentido geral de uma filosofia crítica consiste nesse expurgo, na busca de uma constante, uma invariância que possa se repetir em todo o lugar a despeito de qualquer singularidade, qualquer dor ou sofrimento. Quais as conseqüências dessa exclusão? Certamente ela faz surgir um mundo lateralizado: direita ou esquerda, terra ou sol, sujeito ou objeto, natureza ou sociedade. E, mais do que isso, ela faz surgir a violência, a guerra, a discriminação em nome de uma verdade tomada como única, como homogênea: o império da verdade. Hiroshima é para Serres[33] um dos efeitos da expansão do império do pensamento crítico. Ao falar de sua formação intelectual, Serres diz que cresceu no meio de muitas guerras, guerra Espanhola, Hiroshima, Vietnã, Argélia. Numa guerra, conclui ele, há sofrimentos de ambos os lados, há mortes de ambos os lados. Aqui toda a potência da sua reflexão filosófica é lançada sobre uma análise muito aguda acerca dos dualismos que caracterizam o pensamento crítico e da violência que tais dualismos incitam. Para falar dessa lateralização do mundo Serres conta a seguinte estória:
“Um dia, em Veneza, entrando na igreja dos Eslavônios, vi são Jorge matando o dragão. Aquilo me pareceu simbolizar o que eu sempre conhecera. São Jorge estava de um lado, e o dragão do outro, simétricos e absolutamente semelhantes. Sob o peitoral do dragão, sob o ventre do cavalo, havia os membros espalhados de um homem e de uma mulher. Essa era a minha geração; à esquerda e à direita, estavam são Jorge e o dragão, formando um tipo de arco. Foi esta dualidade que nunca pude aceitar. Essa teologia de Deus e de Diabo.” (Serres, M. apud Guillebaud, J-C, 1990, p.187).
Toda a sua filosofia é marcada por essa conclusão e a afirmação da rede, um lugar mestiço, adquire seu pleno sentido frente a ela, uma filosofia cujo princípio não se encontra na purificação, mas na mestiçagem; uma filosofia, portanto, que acolhe a diferença e faz dela o seu objeto; uma filosofia, enfim, cujo lema não é a violência, mas sim a tolerância. “Como adquirir tolerância e não-violência, senão colocando-se no ponto de vista do outro, saber do outro lado?”[34]
A filosofia da ciência é, para Serres, uma reflexão sobre as relações da ciência com a violência. “Desde que nasceu a literatura lamenta a miséria e o sofrimento. A ciência ainda não aprendeu a linguagem desse soluço.”[35] Ao contrário, “nada na ciência ajuda, de fato, a suportar a finitude, nem a pensar a morte das crianças, a injustiça que atinge os inocentes, o triunfo permanente dos violentos, a felicidade fugidia do amor nem a estranheza do sofrimento...”[36] A ciência marcada pelo pensamento crítico, pelos dualismos, por princípios de exclusão e ideais de purificação incita a violência e o terror[37]. Uma crise legítima das ciências consiste precisamente em resgatar o encontro da ciência com o mal, com o sofrimento e a dor, em última instância, o encontro da ciência com o barulho de Hiroshima. Esse é o sentido que Serres atribui ao fogo: fazer arder a ordem, a lei, a invariância fazendo-as descer até “os turbilhões fluidos”[38] que definem o real, até a finitude do homem. Não se trata de afirmar um irracionalismo, mas ao contrário, trata-se de afirmar uma razão instruída com a mestiçagem. Isso significa dizer uma razão tolerante, que acolhe a diferença, que engendra verdades locais, provisórias e temporárias. Ao eu penso do cogito, Serres mistura o eu sofro, e conclui que “não há razão nem proporção sem mistura”[39]. No enfoque do filósofo, Hiroshima é o testemunho de que podemos morrer dos efeitos dos produtos da razão. E mais do que isso, Hiroshima é o testemunho da morte, da finitude do homem no coração da ciência: “átomo e bomba, química e ambiente, genética e bioética.”[40] É o fracasso dos dualismos que opõem razão e objeto. Hiroshima nos apresenta um alerta, uma exigência de prudência da razão e dos seus dualismos.
Partindo dessa análise, Serres nos propõe então uma retenção do pensamento crítico e da violência que ele produz. Uma retenção da razão moderna e de seus dualismos. Como conseqüência dessa retenção, uma verdade não reina sem partilha, um modo de conhecer não se constitui em única solução de acesso ao mundo, um a priori não se repete homogeneamente sobre todo o espaço. Ao contrário, a retenção da razão esposa a diferença ao acolhê-la e faz da racionalidade um efeito temporário, da causalidade uma relação reversível, do tempo e do espaço resultados negociados localmente, da lei um caso particular de uma ontologia de relações variáveis, do pensamento crítico um dos modos de um pensamento mestiço, enfim, a retenção da razão opera uma passagem da violência à tolerância.
Para Latour, Serres apresenta uma genealogia das coisas cujas conseqüências ressoam no domínio das práticas científicas: “a invenção dos fatos não é a descoberta das coisas out there, é uma criação antropológica que redistribui Deus, a vontade, o amor, o ódio, e a justiça.”[41] Serres faz da ciência um ramo do Judiciário quando define a coisa como multiplicidade ontológica, o que significa dizer que um fato não existe isoladamente, ele só existe a partir da rede heterogênea que o sustenta. Na ciência experimental de Boyle, o vácuo como fato só existia na medida em que era produzido e sustentado pela bomba de ar, pela Royal Society, pelos colegas de Boyle; uma rede é o que produz e sustenta um fato científico. Citando Serres, Latour mostra que a palavra coisa tem como origem ou raiz a palavra causa, proveniente da área jurídica. “Como se os objetos em si existissem apenas de acordo com os debates de uma assembléia (...).”[42] Assim, a sociedade moderna não é aquela que, diferentemente de todas as outras, está livre das relações com a religião, com as questões políticas, enfim com o que Serres chamou de mal, sofrimento, morte. Ao contrário, da mesma forma que qualquer outra sociedade, a nossa também redistribui acusações, “substituindo uma causa - judiciária, coletiva, social - por uma causa - científica, não-social, matter of factual - substituindo Ding por Thing.”[43] Em todo caso, uma causa que engendra uma série de substituições, traduções, desvios.
Ao invés de partir de um mundo já dividido entre pólos opostos, a filosofia de Serres, retomada por Latour, coloca em cena as coisas definidas ontologicamente por sua multiplicidade e por seu estatuto de causa. À violência dos cortes, das separações, das rupturas, Serres propõe as substituições que definem uma pragmatogonia, isto é, “uma genealogia da troca de propriedades entre humanos e não-humanos.”[44] Uma genealogia, portanto, das coisas, esses seres híbridos que fundamentam o nosso coletivo[45] e que por seu estatuto de causa redistribuem em última instância natureza e sociedade; genealogia que não procede por metamorfoses, mutações ou dialética, mas antes por substituições e desvios. Na perspectiva de Latour, as ciências nada mais são do que retardatárias nessa longa série de substituições: os fatos científicos são coisas - things - e, do mesmo modo que qualquer outra coisa, em seu estatuto de causa, redefinem a natureza e a sociedade. Foi o que Boyle fez com o vácuo, esse testemunho arrancado de uma pena de galinha inserida no dispositivo da bomba de ar[46]. Com o vácuo, Boyle almejava o fim das guerras civis, questionava o testemunho dos humanos, propunha, enfim, uma sociedade pacificada pela objetividade do fato. Em jogo, uma redistribuição, uma reinvenção da natureza e da sociedade. Tal é o sentido da ciência como rede de atores.
Abstract: This essays aims to discuss the concept of network considering the point of view of M. Serres and the point of view of science and tecnology antropology of Bruno Latour. The concept of network is the conducting wire of a philosophy of science – defended by both authors – that defines science as a bricolage and as an heterogeneous practice.
Buydens, M. Sahara. L’Eshetique de Gilles Deleuze. Paris, Vrin, 1990.
Guillebaud, J. C. Michel Serres. Filosofias. Entrevistas do Le Monde. São Paulo, Ed. Ática, pp.178-189, 1990.
Latour, B. Pragmatonies. A Mythical Account of How Humans and Nonhumans Swap Properties. American Behavioral Scientist. Vol. 37, nº 6, pp. 791-806, 1994-a.
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Latour, B. Michel Serres. Eclaircissements. Paris, Ed. François Bourin, 1992.
Latour, B. Postmodern? No, Simply Amodern! Steps Towards an Antropolgy of Science. Studies in History and Philosophy of Science, 21(1), Grã Bretanha, Pergamon Press, pp. 145-71, 1990.
Serres, M. Filosofia Mestiça. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993.
Serres, M. O Contrato Natural. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1991.
Serres, M. As Ciências. In: Le Goff, J. & Nora, P. História. Novas Abordagens. Rio de Janeiro, F. Alves, pp.160-179, 1988.
Serres, M. Estima. In: Grisoni, D. Políticas da Filosofia. Lisboa, Ed.Moraes, pp.81-95, 1977.
Serres, M. A comunicação. Portugal, Rés Editora, s/d.
[1] Serres, M. 1993, p. 100.
[2] Crawford, H. 1993, p.09.
[3] Serres, M. s/d, p. 07-27. Devo a Anelize Terezinha Araújo a preciosa sugestão da leitura desse trabalho de Serres.
[4] Serres, M. op. cit., p. 09-10.
[5] Serres, M. op. cit., p.12.
[6] Serres, M. op. cit.
[7] Serres, M. op. cit., p.13.
[8] Serres, M. op. cit., p.13.
[9] O conceito de devir é aqui tomado na seguinte acepção: “O devir deve ser considerado nele mesmo como uma prática de aliança e de contágio que se faz segundo sua própria linha ‘entre’ os termos colocados em jogo.” Buydens, M. 1990, p. 50.
[10] Serres, M. s/d, p.15.
[11] Serres, M. 1988, 1977.
[12] Latour tece um comentário muito interessante acerca do estilo dos textos de Serres. Ele afirma que o estilo de Serres é parte de seu próprio argumento filosófico, isto é, a língua é um material no qual ele experimenta os seus argumentos. Assim, a sua escrita é ela também marcada por múltiplas conexões e entradas. Não há em seus textos o apego a uma única metalinguagem, a um referencial único que centralize todas as argumentações. Entendendo o pensamento crítico como aquele marcado por um ideal de purificação que funciona como um centro sobrecodificador de todos os elementos da periferia, Latour afirma o caráter não-crítico da filosofia de Serres, bem como de sua escrita. Não-crítico porque não parte desse centro unificador - seja ele definido como sujeito, objeto, natureza ou sociedade. Ao contrário, trata-se de acompanhar o modo como esses muitos centros são construídos, engendrados a partir de uma rede. Seu estilo de escrita é, pois, uma experimentação dessa ontologia, o que faz com que os seus textos sejam, segundo Latour, mais fáceis de ler do que muitos outros textos porque para lê-los nós não precisamos abandonar o mundo em que vivemos. Cf. Latour, B. 1992, p. 96-7.
[13] Serres, M. 1977, p. 81-2.
[14] Serres, M. op. cit., p. 83.
[15] Serres define a modernidade a partir da seguinte característica: a separação radical entre a razão e o mundo. Mais do que separação, trata-se de uma relação de dominação da primeira sobre a segunda. A modernidade, sob o império da filosofia cartesiana, faz com que “o sujeito do conhecimento e da ação goze de todos os direitos e seus objetos, de nenhum.” Serres, M. 1991, p. 47-8.
[16] Serres, M. 1991, p. 45.
[17] Cf. Serres, M. op. cit., p. 47.
[18] Serres, M. 1988, p. 171.
[19] Serres, M. op. cit., p. 172. Talvez seja possível dizer que o calor é antikantiano uma vez que ele implica uma concepção do real que tem como fio condutor a irredutibilidade de direito das práticas de mediação. O calor não se presta a purificações, ele não aceita ser filtrado em elementos puros. Ele é hibridação.
[20] Serres, M. 1993, p.15.
[21] Serres, M. 1988, p. 176.
[22] Serres, M. 1991, p. 78.
[23] Serres, M. op. cit., p. 24.
[24] Serres, M. 1988, p.178.
[25] Esse é também o convite da fenomenologia husserliana, mas nesse enfoque, voltar às próprias coisas aponta para “o procedimento necessário para que se faça a passagem das ‘representações impróprias’ às ‘representações próprias’ determinadas pela intuitividade e pelo preenchimento”. Trata-se de um retorno “ao conhecimento em sua doação intuitiva (...) O ‘retorno aos objetos’ não é assim senão o retorno aos atos através dos quais se tem um conhecimento dos objetos.” Por isso, na fenomenologia, retornar às coisas é retornar à consciência transcendental. As coisas não se confundem com os objetos, elas são antes os correlatos da consciência. Aqui voltar às próprias coisas é um dos resultados obtidos por um prática de purificação. Cf. Moura, C. A. R. 1989, p. 18-25.
[26] Cf. Serres, M. 1993, p. 47.
[27] Serres, M. op. cit., p. 17.
[28] Cf. Serres, M. op. cit., p. 59.
[29] Serres, M. op. cit., p.82.
[30] Guillebaud, J. C. 1990, p. 186.
[31] Latour, B. 1992, p.29.
[32] Serres, M. 1993, p.82.
[33] Cf. Latour, B. 1992; Serres, M. 1993; Guillebaud, J. C. 1990.
[34] Serres, M. 1993, p. 21.
[35] Serres, M. op. cit., p. 84.
[36] Serres, M. op. cit., p. 83.
[37] Cf. Latour, B. 1992, p.92.
[38] Serres, M. 1993, p. 68.
[39] Serres, M. op. cit., p.140.
[40] Serres, M. 1991, p.108.
[41] Latour, B. op. cit., p.83.
[42] Serres citado por Latour, B. op. cit., p.82.
[43] Latour, B. 1990, p. 163.
[44] Latour, B. 1994-a, p. 794.
[45] Latour utiliza a palavra coletivo para definir a sociedade em termos de uma hibridação entre humanos e não-humanos. O objetivo é marcar o sentido híbrido das relações sociais compostas não apenas das relações entre os homens de um lado e as coisas de outro, mas por conexões heterogêneas, díspares da qual fazem parte humanos e não-humanos. Cf. Latour, B. op. cit., p. 807, nota 5.
[46] Sobre a pena de galinha como testemunho da existência do vácuo, cf Latour, B. 1994-b, pp. 26 e sgts.