Marcia Moraes
Professora Adjunta do Dept. de Psicologia da Universidade Federal Fluminense
Doutora em Psicologia Clínica PUC/SP
Email: mmoraes@nitnet.com.br
Eu gostaria de levantar duas questões correlacionadas: a primeira, qual é o sentido da noção de rede, tal como proposta na atualidade por Bruno Latour ? E a segunda, uma vez que delimitemos esta noção de rede, qual é a sua importância para a psicologia?
Com o avanço da Internet a noção de rede ganhou enorme destaque e tem sido habitualmente relacionada a este contexto. No entanto, antes mesmo deste avanço da Internet já falávamos em rede: redes ferroviárias, rede de esgoto, rede de televisão, redes sociais. Expressões que não são novas, nem desconhecidas. Em todas estas expressões faz-se notar a noção de ligação, de vínculo. Em artigo recentemente publicado no Jornal Folha de São Paulo[1], notificava-se que já no século 13 os inquisidores católicos pararam o avanço da heresia explorando princípios que são incrivelmente parecidos com os que a ciência usa hoje para descrever redes tão diversas quanto estruturas sociais, o contágio de uma doença e a internet. Foi no final do século 13 que os inquisidores perceberam que para evitar a disseminação da heresia, não bastava caçar e isolar o indivíduo herético. A heresia dizia respeito às conexões mais do que aos indivíduos. Ou seja, uns poucos indivíduos altamente conectados, influentes e móveis disseminavam a heresia mais rapidamente do que ela podia ser erradicada pela matança indiscriminada ou pelo aprisionamento dos hereges. Os inquisidores perceberam a importância das conexões, das alianças na produção e disseminação da heresia. Estas informações são interessantes e apontam para um sentido de rede extremamente atual, presente em diversos trabalhos.
A noção de rede, presente nos trabalhos de Latour, guarda algo desta idéia: a importância da conexão, da articulação entre elementos híbridos. Mas seria esta afirmação suficiente para alcançarmos o sentido da noção de rede tal como proposta por este autor? Teria Latour introduzido alguma idéia original no que diz respeito à noção de rede?
No livro Jamais Fomos Modernos Latour apresenta a noção de rede para expor suas teses acerca da não modernidade de nossas práticas. Vivemos num mundo povoado por objetos híbridos, nos quais não conseguimos mais fazer operar as modernas práticas de purificação responsáveis por estabelecer as distinções entre o natural e o social, o objeto e o sujeito. A soja transgênica, por exemplo, seria um objeto natural ou social? Impossível delimitar estas fronteiras. Este objeto híbrido surgido das bancadas de um laboratório passa atualmente por inúmeras traduções e deslocamentos se envolvendo em questões políticas, mercadológicas e jurídicas.
A noção de rede foi então apresentada por Latour como uma tese ontológica. Jamais fomos modernos porque jamais nos encaixamos nas dicotomias que marcaram a modernidade. Nem natural nem social, somos como a soja transgênica, híbridos sócio-técnicos. A noção de rede não é, para Latour, oposta à dicotomia moderna. Mas é aquilo que nos faz passar ao largo destas dicotomias. A noção de rede encontra ressonâncias filosóficas com o trabalho de M. Serres e de Deleuze e Guattari. É o próprio Latour quem indica que a noção de rizoma é uma palavra perfeita para a rede. Uma rede é um mapa e não um decalque, quer dizer, a rede de atores é aberta, heterogênea de modo que a princípio é possível estabelecer todo e qualquer tipo de conexão, sem que seja uma necessidade de direito a redundância de elementos-chaves. Na linguagem de Latour podemos dizer que rede é sinônimo de híbridos, de quase-objetos. Enquanto a lógica da modernidade é a lógica do decalque, a lógica da rede é aquela do mapa. Sujeito e objeto não são pólos dados de antemão, mas construções possíveis no plano da rede. Ao tratar das ciências, Latour afirma um enfoque antropológico das ciências e das técnicas, não entendendo a palavra antropologia na sua referência ao antropos-homem, mas no estranhamento que comportam as pesquisas antropológicas das outras civilizações. É o caso aqui de nos tornarmos outros, híbridos de natureza e cultura. Além disso, com a palavra antropologia é importante frisar o sentido empírico, concreto de suas investigações. As ciências e as técnicas são investigadas no seu modo de construção, na rede de sua prática. Se na perspectiva epistemológica o empírico não tinha o poder de questionar uma distinção conceitual, aqui o domínio racional é efeito de uma prática, é imanente, intrínseco ao plano no qual ele se constrói. Retorno da potência do empírico, de sua inventividade e engenhosidade. Empírico não é sinônimo de indiferenciação. A rede de atores, em sua concretude, comporta diferenciações, ela é o plano onde serão construídas as distinções entre práticas científicas e práticas não-científicas. Entretanto, tais distinções não são justificadas a partir de um método racional. Elas não são a priori, mas a posteriori. É preciso acompanharmos concretamente o modo como elas se constroem, se inventam, se produzem. Na ocasião em que escrevi minha tese de doutorado eu estava preocupada com esta afirmação e buscava nesta noção de rede uma alternativa para as discussões epistemológicas no campo da psicologia. Meu objetivo era mostrar ser possível falarmos da psicologia a partir da noção de rede. Então às discussões a respeito da cientificidade da psicologia – é ciência, não é ciência? – poderiam ser recolocadas no sentido não de procurar as fronteiras entre ciência e não ciência, entre psicologia e senso comum, mas no sentido de interrogar pelas alianças estabelecidas entre a psicologia e as demais disciplinas. Eu supunha então que o que é próprio da psicologia é manter uma relação sempre horizontal com outros saberes. O objeto de investigação da psicologia seria desenhado a partir de tais conexões. Em resumo, eu discutia a noção de rede num plano epistemológico. Hoje, no entanto, tenho pensado diferentemente as possíveis relações entre a teoria ator-rede e a psicologia.
Em alguns textos posteriores ao Jamais Fomos Modernos, Latour sublinha uma profunda insatisfação com a noção de rede e, do meu ponto de vista, é nesta autocrítica que podemos notar o sentido da noção de rede, o seu alcance, a sua novidade. Curiosamente é no limite da noção de rede que podemos entrever todo o seu sentido e alcance. Num destes trabalhos[2] o autor afirma que existem quatro pontos que não funcionam bem na teoria ator-rede: a palavra teoria, a palavra ator, a palavra rede e o hífen que liga o ator à rede. Penso que as reflexões que se seguem a esta autocrítica do autor são as mais interessantes para nós, psicólogos.
Qual o problema com a palavra rede? Como disse acima, esta noção não é nova. A metáfora digital popularizou este termo num sentido que para Latour é desastroso. Porque no sentido presente, por exemplo, na Internet, a noção de rede está em consonância com a possibilidade de comunicação imediata e de acesso direto a qualquer informação. Neste sentido, parece ser possível falar em informação, algo que circula sem nenhuma transformação. É justamente este sentido que Latour considera desastroso. Isto é, a noção de rede, tal como popularizada pela Internet implica uma idéia de circulação da informação sem transformação. Esta idéia é oposta àquela que Latour pretendia frisar com a noção de rede. A rede, como um rizoma, é marcada pela transformação. Em outro texto, o autor afirma: não há in-formação, só trans-formação[3]. Então o acento recai na ação, no trabalho de fabricação e transformação presente nas redes. Talvez pudéssemos tomar como caminho a sugestão do próprio autor e ao invés de falarmos em networks deveríamos falar em worknets[4]. Isso significa afirmar que interessa ao pesquisador seguir o trabalho de fabricação dos fatos, dos sujeitos, dos objetos. Fabricação que se faz em rede, através de alianças entre atores humanos e não-humanos. É importante sublinhar que o que está sendo frisado é a noção de ação, ação de fabricação. Então na noção de rede o que importa para Latour não é só a idéia de vínculo, de aliança. Mas sim o que estes vínculos produzem, que efeitos decorrem de tais alianças.
Mas neste ponto chegamos a outro problema: a noção de ator. O que é um ator? Muitas vezes esta noção foi confundida com os tradicionais atores da sociologia, com o indivíduo como fonte e origem de uma ação. Para Latour, um ator é tudo o que tem agência, isto é, ele se define pelos efeitos de suas ações. Isso significa dizer que um ator não se define pelo que ele faz, mas pelos efeitos do que ele faz. E mais, o ator não se confunde com o individuo, ele é heterogêneo, díspar, híbrido. Um quebra-molas é um ator que redefine a minha moralidade, que impõe efeitos sobre as minhas ações.
O par ator-rede, incluindo o hífen, é para Latour insuficiente para dar conta da ação que se distribui em rede, dos processos de fabricação do mundo. Isso porque, o par ator-rede foi muitas vezes tomado como o par indivíduo-sociedade. Mas não é disso que se trata. A noção de rede não deve ser tomada como um contexto que se acrescenta a um indivíduo. Se de um lado a noção de rede é interessante porque traz a idéia de movimento, de circulação, de outro lado, ela é insuficiente porque não dá conta dos processos de fabricação, das ações que se estabelecem entre atores heterogêneos. Nos seus últimos textos Latour chama a atenção para este aspecto: o que interessa ao pesquisador é acompanhar a construção dos fatos, das crenças, dos mitos, em outras palavras, a rede é sinônimo de fabricação, de ação. Fabricação interessante, porque deve ser considerada como um processo distribuído entre todos os atores. Não há um agente primordial, central do qual emana a fabricação do mundo. Não se trata de supor um agente, que como um titereteiro produz e cria movimentos sobre bonecos antes inertes. A relação entre o titereteiro e a marionete é como aquela descrita no século XIX na história de Pinóquio. O titereteiro dá vida a Pinóquio, mas Pinóquio dá vida ao titereteiro. Pinóquio coloca o marionetista diante de questões e problemas que ele não tinha. Então há uma ação recíproca e o que importa é acompanhar os efeitos desta ação, os muitos deslocamentos que ela produz seja em Pinóquio, seja no Titereteiro.
Será então que devemos considerar a teoria ator-rede como um quadro de referência, como uma teoria que podemos aplicar a muitos domínios, inclusive à psicologia? Tal como Galileo, recentemente Latour publicou um texto escrito na forma de um diálogo entre um professor, que é ele mesmo, e um aluno envolvido com a redação de sua tese de doutorado. São instigantes as inquietações do aluno e o professor, na maioria das vezes, um rabugento de marca maior, vai sugerindo alguns caminhos, algumas pistas. O aluno pergunta: então para que serve a teoria ator-rede? Eu tenho que escrever uma tese e o meu orientador quer que eu apresente um quadro de referência para o meu objeto de investigação. O que eu faço com a teoria ator-rede? Estas questões são as nossas, nesta mesa.
A teoria ator-rede não é uma teoria cujos princípios estejam dados de antemão. Trata-se antes de um método, um caminho para seguir a construção e fabricação dos fatos. Não basta dizer: veja ali, bem ali, há conexões, há alianças! Então estamos falando de rede! De modo nenhum. Não basta apontar com o dedo indicador as alianças. O que está em questão não é a aplicação de um quadro de referência no qual podemos inserir os fatos e suas conexões. O que importa é seguir a produção de diferenças, os efeitos, os rastros deixados pelos atores. O próprio Latour apresentou algumas vezes trabalhos que seguiam a produção dos fatos científicos, acompanhavam as muitas conexões que acabavam por estabelecer distinções entre fatos validados e fatos descartados. Seus trabalhos sobre Pasteur, sobre a polêmica entre Boyle e Hobbes, sobre a fabricação do hormônio do crescimento são a este respeito instrutivos.
Mas e a psicologia? Afinal de contas, o que tudo isso tem a ver com a psicologia? Hoje já não penso que devamos situar as contribuições da teoria ator-rede para a psicologia no seio de um debate de cunho epistemológico. Porque considero esta análise insuficiente. Penso que a questão deva ser coloca num outro nível, num nível pragmático: o que fazemos com isso?
Parece-me hoje que há uma tese importante na teoria ator-rede: a idéia da fabricação, implicada no limite da noção de rede. Esta tese nos faz pensar no social não em termos de relações entre homens, mas sim em termos de processo, de ação, de produção. Esta talvez seja uma lição importante para a psicologia: em lugar de vínculos entre homens, trata-se de seguir os vínculos entre humanos e não-humanos e mais do que isso trata-se de perguntar pelos efeitos que tais vínculos produzem. Aqui o termo social não designa a matéria de que é feita alguma coisa, mas os processos através dos quais são construídos os fatos, a cognição. Então uma psicologia social não é aquela que lida com o homem em sociedade, mas aquela que acompanha, segue, o processo de fabricação do homem e dos objetos. Estranha psicologia esta, sem dúvida, já que falamos de uma psicologia que lida também com os não humanos. Os não-humanos, como disse acima, têm agência, produzem efeitos no mundo, modificam minhas ações, redefinem a minha cognição. Psicologia dos não humanos? Estranhíssimo, mas penso ser esta uma contribuição importante da teoria ator-rede para a psicologia. Falo de contribuições, melhor seria falar de alianças. São alianças parciais, pontuais. Não penso que a teoria ator-rede nos sirva de modelo, de bandeira e que devemos sair todos por aí a cata das conexões entre humanos e não humanos.
Por fim, gostaria de sublinhar um último ponto que me parece também bastante curioso: a questão da ética. Isso porque, como disse acima, não me parece que devamos tomar a noção de rede no âmbito epistemológico apenas. Falar de coletivos sócio-técnicos nos leva a pensar as práticas psicológicas como práticas híbridas, coletivas. Temos então que redefinir a ética. O que é uma ética do coletivo? Esta é, do meu ponto de vista, uma questão que permanece em aberto.
Brooks, M. (2003) Inquisição Digital. Vaticano combateu e venceu a proliferação de heresias nos séculos 13 e 14 com métodos redescobertos agora pela teoria das redes sem escala, como a Internet. Disponível na Internet via: www.uol.com.br/bibliot/arqfolha.htm. Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 7/9/03.
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Latour, B. (1998) Faktura de la notion de réseaux à celle d’attachement. Disponível na Internet via www.ensmp.fr/~latour/articles/1998.htm. Acesso em setembro 2003.
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Acesso em setembro de 2003.
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Moraes, M. O. (1998) Uma psicologia em ação. Tese de doutorado. PUC, São Paulo.
Serres, M. (s/d) A comunicação. Portugal, Rés Editora.
[1] Brooks, M. 2003.
[2] Latour, B. 1999.
[3] Latour, B. 2002.
[4] Latour, B. 2002.