Representações de usuário:
práticas, métodos e sociologia

Reprodução livre, em Português Brasileiro, do texto original de Madeleine Akrich para fins de estudo, sem vantagens pecuniárias envolvidas.
Todos os direitos preservados.

Free reproduction, in Brazilian Portuguese, of Madeleine Akrich’s original text for study purposes.
No pecuniary advantagens involved. Copyrights preserved.

Madeleine Akrich

(tradução de Fernando Manso)

Akrich, Madeleine. 1995. ‘User Representations: Practices, Methods and Sociology’
in Rip, Arie et alii. 1995. "Managing Technology in Society – The approach of
Constructive Technology Assessment". New York: Pinter, p. 167-184
.

Desenvolvimentos tecnológicos invadem uma sociedade composta de usuários complexos e multifacetados que se movem dentro de um conjunto heterogêneo de relações. Usuários são simultaneamente consumidores, cidadãos, membros de uma família, de uma fé religiosa, de um clube social, de um partido político, de uma profissão, e outros. Em muitos casos, os debates sobre projetos técnicos provocam a necessidade de arbitrar entre as posições variáveis do usuário que sejam mais ou menos incompatíveis dentro de um dado sistema tecnológico. Em decorrência, criar um mercado significa invariavelmente sintonizar em várias freqüências simultaneamente. A forma pela qual uma inovação se estabelece não pode ser reduzida a um modelo, seja o consumidor econômico racional, seja o comprador em busca de status, seja o inveterado seguidor de tendências. Ao contrário, o sucesso ou falha das inovações depende freqüentemente da sua capacidade de lidar com diferentes usuários com diferentes habilidades e aspirações. O mercado de micro computadores é um exemplo muito instrutivo aqui. A importância dos usuários no desenvolvimento tecnológico tem sido reconhecida por vários economistas. Em particular, eles têm mostrado o seguinte:

O processo de inovação não termina quando um produto é lançado. O destino final de uma inovação depende em grande medida do recrutamento dos primeiros usuários (David 1986a, b) e da sua capacidade de gerar toda uma série de melhoramentos que afeta não apenas a tecnologia proposta, mas também elementos de seu ambiente e/ou tecnologias complementares (Rosenberg 1976 e Teece 1986).

Em certas áreas tecnológicas os usuários cumprem um papel predominante na concepção e difusão de uma inovação enquanto os empreendedores cuidam principalmente de produzir o dispositivo (von Hippel 1976 e 1988)

O desenvolvimento e comercialização de inovações são baseados nas interações entre os inovadores e seus usuários potenciais, um processo que capacita ambos os lados a melhorar seus conhecimentos e que admite pequenos ajustes nos produtos (Andersen e Lundvall 1988; Meyers e Althaide 1991).

Neste capítulo eu estenderei esta análise econômica dos usuários no desenvolvimento tecnológico. Os economistas focam principalmente em como a interação entre inovadores e certos usuários admite ajustes entre uma oferta que já existe e uma demanda que só se definirá na interação. Eu vou uma etapa além e argumento que os inovadores estão desde o início constantemente interessados em seus futuros usuários. Eles constroem muitas representações diferentes desses usuários. E objetivam essas representações nas escolhas técnicas.

As diferentes formas de representação de usuário geradas durante os processos de inovação são de importância crítica para a Avaliação Construtivista da Tecnologia (CTA) a qual visa modular a mudança técnica. CTA precisa procurar descobrir como é possível, nos processos de desenvolvimento e comercialização de um sistema tecnológico, reconciliar representações de usuário que podem ser quase incompatíveis ou até mesmo conflitantes. Por exemplo, muitas pesquisas de opinião mostram que a maioria está a favor de reduzir o consumo de energia do país (seja por razões de economia, de conservação ambiental, de auto-suficiência nacional, ou o que quer que seja). No entanto, um simples apelo ao senso de responsabilidade das pessoas não é suficiente para produzir um novo tipo de usuário poupador de energia. O que é necessário são sistemas aplicativos que superponham as representações do usuário que valoriza o conforto pessoal (que implica num alto consumo de energia) com a daquele que é cuidadoso no consumo de energia. Para fazer essa superposição são necessárias representações (num sentido cognitivo e político) do que os supostos usuários são e do que eles querem (compare Downey, neste volume).

Neste capítulo, eu descreverei a variedade de técnicas empregadas por projetistas para construir e então apropriar as representações de usuário. Esta análise tornará claro que o desafio para a CTA não é tanto pesquisar novas representações de usuário pois já há muitas delas. A CTA precisa descobrir métodos que dêem conta das muitas representações existentes, de tal forma que elas convirjam numa forma que combine representações diferentes e que permita que o programa de desenvolvimento inicial prossiga. Voltando ao exemplo do nosso poupador de energia, questões precisam ser respondidas. Em primeiro lugar, como fazer com que usuários, que podem ser insensíveis às demandas de política nacional e estar assediados por uma variedade de problemas e restrições mais imediatas, passem a ter interesse em sistemas que poupem energia? Em segundo lugar, uma vez que sistemas que poupem energia tenham sido adotados, como assegurar que seu uso poupará, de fato, energia? Isto é importante, porque usuários sempre podem deformar ou frustrar o propósito inicial de um sistema tecnológico (veja também Akrich 1992).

Ao longo do capítulo três estudos de caso serão discutidos[1]. Todos os três são sistemas tecnológicos típicos para o mercado de massa:

·       Um terminal interface ligando uma rede de TV a cabo a seus assinantes, conhecido como a unidade CA (coffret d’abonné) e projetado basicamente para selecionar programas de TV;

·       Um conjunto de telefones conhecido como “Contact Ambiance” projetado para uso doméstico;

·       Um sistema computadorizado doméstico conhecido como “Securiscam” que tem várias aplicações que vão desde a vigilância da casa a aquecimento programado e controle remoto de dispositivos automáticos, adaptáveis segundo as especificações dos usuários.

A unidade CA foi suportada pela France Telecom e desenvolvida em próxima colaboração com os fabricantes, enquanto os outros dois sistemas são desenvolvimentos inteiramente privados. Estes três sistemas ilustram que a criação de artefatos bem sucedidos depende da capacidade dos inovadores de gerar representações de usuário e integrá-las em seus projetos, e ilustram também quais alternativas estratégicas estão disponíveis para alinhar as várias posições de usuário. Ao analisar essas estratégias, eu estenderei o escopo do processo de inovação para além de suas fronteiras geralmente aceitas, para englobar decisões de marketing e políticas que iluminam linhas de pensamento e ação relevantes para a avaliação construtivista da tecnologia.

Técnicas de Representação de Usuário

Nesta seção eu descrevo as técnicas para produzir representações de usuário observadas em nossa pesquisa. Nossa abordagem diverge fundamentalmente daquela do pesquisador de mercado que lida apenas com uma fração da gama de métodos empregados em conexão com o projeto e o desenvolvimento de sistemas tecnológicos. Nós deliberadamente evitamos fazer uma distinção prima facie entre técnicas “legitimadas” por uma base formal científica e conceitual, e aquelas de um tipo mais empírico sem uma tal base. Em nossa abordagem, nós consideramos que o simples fato de que um argumento introduzido numa discussão do projeto tenha sido proposto em nome do usuário, o torna relevante para nossos propósitos. Isso nos leva a classificar as técnicas observadas em duas categorias: técnicas explícitas, baseadas em habilidades ou qualificações na área de definir ou interpretar representações dos consumidores; e técnicas implícitas, baseadas em afirmações feitas em nome dos usuários.

Técnicas Explícitas

Pesquisas de Mercado

Pesquisas de mercado desfrutam de um status muito especial. Quando questionados sobre usuários, os autores de uma inovação imediatamente citam a pesquisa de mercado como um pilar que fundamenta sua percepção dos futuros usuários de seus sistemas. No entanto, quando questionados por especificidades, eles se tornam muito evasivos e não produzem mais do que umas poucas amplas generalizações sugerindo a demanda potencial para produtos de um certo tipo. Pesquisadores que persistem na tentativa de obter uma cópia do relatório de pesquisa provavelmente ficarão desapontados: em apenas um dos três casos investigados nós pudemos achar algum traço escrito de um tal estudo. Nossa experiência é que esta situação estranha reflete, em muitos casos, que esses estudos são usados para persuadir as autoridades decisórias mais altas a apoiarem o projeto, mas que esses estudos são raramente consultados durante a subseqüente fase de desenvolvimento. Em outras palavras, a prática atual é baseada numa divisão de responsabilidades entre os lados técnico e marketing, o primeiro entregando um pacote completo do produto que o segundo é esperado vender “como achado”. Nessas condições a pesquisa de mercado pode ser usada para identificar compradores, ou para retocar os argumentos de venda, mas, certamente, ela não tem nada a ver com o projeto e o desenvolvimento do produto real.

O relatório da pesquisa de mercado que obtivemos do telefone “Contact Ambiance”, confirmou esta interpretação. Ele foi emitido quando a fase de projeto do produto estava quase completada. Seus indicadores salientes eram do tipo sócio-econômico (“originalidade” da aparência externa e preço). O relatório não incluía recomendações técnicas, deixando assim todas as decisões para os projetistas. O objetivo da pesquisa de mercado não foi revelar oportunidades para criar uma nova demanda, mas (assumindo uma demanda existente) identificar qualquer coisa que pudesse refrear o impulso de compra.

Teste do consumidor

Quando um produto emerge do seu casulo, seus projetistas freqüentemente organizam testes dirigidos a um grupo de amostra, suposto ser representativo de seus futuros usuários. A natureza e a cobertura de tais testes podem variar muito e, no caso do terminal CA, dois tipos diferentes foram utilizados. O primeiro tipo de teste foi conduzido com pessoal das administrações patrocinadoras e o fabricante. O objetivo era descobrir qual das várias apresentações consideradas para a unidade obtinha a aprovação mais ampla. Outras questões se relacionavam ao lugar reservado para a unidade dentro da “organização do espaço doméstico”. A pesquisa foi do tipo “democrático” assumindo a existência de um padrão médio de gosto, minimizando o número de usuários insatisfeitos, e pesando acentuadamente o fator motivação do usuário.

O teste do consumidor do telefone “Contact Ambiance” consistiu em introduzir apresentações externas fortemente contrastantes de produtos tecnicamente idênticos. Isto estava em contradição direta com os pressupostos subjacentes ao teste descrito acima. Assim, em primeiro lugar é obscuro por que o teste foi feito. Os mercados visados pelos outros dois produtos eram inteiramente diferentes. Por exemplo, não foi propriamente o terminal interface (a unidade CA) que foi comercializado, mas todo o sistema envolvido com a rede de comunicação de vídeo. Este caso torna claro que a natureza de um teste depende do tipo de mercado que é esperado. Em outras palavras, a implementação de uma técnica particular de teste do consumidor equivale a fazer uma ou mais suposições sobre qual mercado é esperado expandir.

O segundo tipo de teste foi contratado de um instituto especializado independente dos patrocinadores do projeto. O objetivo era confirmar a validade ergonômica da unidade CA. Ao mesmo tempo, foi pedido que os entrevistados dessem opiniões sobre a unidade CA, seu lugar dentro da casa, e os serviços aos quais ela dava acesso. Aqui, o usuário era um “sistema operativo” abordado através de um teste do tipo “exame escolar”. A forma pela qual as perguntas eram formuladas, apresentadas e contextualizadas, situava o examinado como um usuário de um sistema tecnológico. Não pode ser esperado que testes desse tipo cubram, de uma vez por todas, toda a faixa de problemas que possam ocorrer com um usuário em contacto com o sistema. De uma maneira geral, a situação “sala de aula” põe ênfase especial em alguns problemas, enquanto alguns outros que só aparecem quando o sistema está em plena operação ficam despercebidos.

Um conjunto de problemas despercebidos deu-se em torno dos procedimentos de segurança. Na unidade CA proposta, o acesso aos serviços sujeitos a pagamento adicional eram protegidos por um código secreto, na forma de uma palavra, que tinha de ser digitado sempre que esses canais eram acionados. Isto permitia ao assinante controlar o acesso a esses serviços pagos, por exemplo, prevenindo que crianças na casa usassem indevidamente os serviços. Uma vez que o usuário selecionasse o canal de acesso restrito, se ele pressionasse a tecla “delete” antes de entrar com todo o seu código, ele era enviado de volta ao canal de acesso geral e tinha de recomeçar todo o procedimento, incluindo a seleção do canal restrito. Aqui, o sistema assumia que o usuário tinha abandonado sua intenção de ver o serviço em questão, ou porque ele não queria incorrer no custo ou porque ele tinha verificado sua incapacidade (não possuía a palavra código). Esta situação não foi prevista nos cenários de teste projetados para verificar o entendimento das instruções de operação e dos procedimentos. O teste assumia que, em todos os casos, o usuário saberia o que ele quer e estaria devidamente capacitado a obtê-lo. O teste não estimulava uma situação diferente onde o usuário tivesse cometido um erro ao entrar com seu código de acesso, mas ainda quisesse acessar o canal restrito entrando novamente com o código. Nesta situação, ser retornado ao canal de acesso geral é tido por uma inconveniência ou uma aberração inexplicável.

Portanto, embora tais testes possam freqüentemente ter a aparência externa de um encontro entre humanos e máquinas, nós precisamos não esquecer que eles não cobrem toda a extensão dos relacionamentos entre os dois. Eles se baseiam em situações “típicas” e simplificadas com o propósito de demonstrar particulares respostas dos usuários. Isso os torna eficientes, mas ao mesmo tempo limita sua verdadeira relevância.

Feedback na experiência

Através de contatos com serviços pós-venda, fornecedores de equipamentos, e outros serviços ao consumidor, os usuários “reais” retornam informação aos projetistas de sistemas tecnológicos. Mas essa informação é duplamente filtrada: pelos próprios usuários que passam apenas as observações que eles consideram relevantes para seu relacionamento com o sistema em si ou com seus agentes; e pelos projetistas por razões semelhantes. Nos casos que estudamos, esse feedback foi um dos fatores causadores de modificações. Por exemplo, foi apenas em situações da vida real que um problema com o apontamento do aparelho de controle remoto da unidade CA foi revelado. O aparelho era efetivo apenas se apontasse diretamente para a unidade. As condições de teste, embora projetadas para desafiar a competência dos usuários prospectivos, falhavam totalmente na detecção de problemas desse tipo. Os testadores estão muito mais concentrados nesta tarefa particular do que usuários, quando se sentam confortavelmente em suas casas em frente de suas telas de TV. A situação de “laboratório” imposta pelo protocolo do teste era irrealisticamente restrita. Os usuários da vida real se negam a ser representados como um operador dedicado de teclado. Enquanto usa o controle remoto ele quer estar apto a manter relações normais com seu ambiente: participar de conversas, dar uma olhada na programação, servir-se de uma bebida ou alguma comida, e assim por diante.

No caso do telefone “Contact Ambiance”, o departamento pós-venda insistiu em adicionar um suporte angular que permitisse ao usuário descansar o fone, sem desligá-lo, o que é necessário, por exemplo, quando ele tem que se mover e procurar informação solicitada pelo seu correspondente. Os projetistas haviam representado e atendido desejos de consumidores-compradores tais como guarda fácil, provendo um telefone de parede (uma opção não usual no mundo dos negócios com o qual o fabricante estava até então acostumado). Mas eles não simularam um abrangente universo de usuário, que poderia ter revelado o infeliz espetáculo oferecido por um telefone balançando sozinho no espaço. Embora, como nossos estudos de caso mostram, feedback das agências pós venda podem sugerir mudanças de projeto, não é sempre possível modificar o sistema de modo a atender qualquer reclamação ou sugestão. Em alguns casos isso poderia criar sérias dificuldades para a produção e para a organização.

Técnicas Implícitas

Pesquisas de mercado e testes têm o objetivo comum de procurar simular o comportamento e reação do prospectivo usuário. Elas apresentam cenários “típicos” representados por pessoas que são supostamente representantes dos usuários da vida real. No entanto eles não são os únicos produtores de representações de usuários presentes nos processos de projeto e desenvolvimento. Feedback através dos serviços pós-venda oferece informação adicional muito valiosa. Outras técnicas menos formais podem ser identificadas também. Essas técnicas têm em comum que elas realmente lidam com usuários “reais”, mas se baseiam em porta-vozes de três tipos gerais: projetistas, consultores especialistas, e outros produtos.

“Eu ...”

Tomar por base a experiência pessoal, forma pela qual o projetista substitui seu chapéu profissional pelo de homem comum, é um expediente muito mais comum do que poderia ser pensado à primeira vista. Quando não há outro meio disponível de trazer o usuário final, ou quando os procedimentos de teste organizados parecem demasiadamente complicados ou caros, argumentos tirados das fontes de inspiração podem soar convincentes. Qualquer que tenha sido o caso, a experiência pessoal como base foi usada ao longo da fase de projeto e desenvolvimento da unidade CA. Isto foi devido, sem dúvida, a algum grau de isolamento do time de projeto. Ele era pesadamente dominado pelos engenheiros especialistas, com ninguém para representar o lado do marketing, nenhum especialista verdadeiro em ergonomia (embora alguns engenheiros achassem que eles poderiam cuidar deste aspecto), nenhum representante da media, e nenhum operador de um serviço comparável.

O especialista

O usuário é trazido para a equação sem cerimônia, mas com grande impacto, dependendo da forma pela qual a companhia ou time de projeto organiza o desenvolvimento de novos produtos. O processo é iniciado por procedimentos que permitem uma colaboração efetiva entre os departamentos técnico e de marketing embora, como encontramos no estudo do “Contact Ambiance”, isto não ocorre sempre. Neste caso, o lado marketing ganhou um status de autoridade só depois um briga dura. Não é tanto que o pessoal de marketing seja mais autorizado a representar o usuário do que o pessoal técnico. Na verdade, dar muita autoridade ao pessoal de marketing, que por definição está mais voltado para o papel do usuário no mercado (comprador, consumidor), pode resultar numa negligência para com o usuário em seu papel técnico (operador de máquina, “consertador”, etc.). Em nossos casos, a introdução desta faceta particularmente técnica do usuário só ocorreu num estágio avançado do desenvolvimento do produto, num ponto onde não era fácil rever as opções tecnológicas. Estes achados mostram que “o usuário” não é uma entidade simples trazida para dentro quando o projeto é lançado, mas um conjunto de características diversas as quais não convergirão necessariamente para uma configuração robusta pronta para acomodar o usuário final definitivo. A presença na organização do projeto de uma ampla faixa de disciplinas, quando todas elas contribuem para a formulação das opções técnicas, pode acelerar e facilitar a fusão daquelas características diversas.

A produção do manual do usuário para a unidade CA foi uma ilustração de como a representação de usuário feita por especialistas pode ser trazida para dentro da organização do projeto. Um grupo especial composto de novos tipos de especialistas, separados do time de projeto, foi constituído para escrever o manual de instrução. Em particular, o novo grupo incluía um especialista que tinha ligações com a primeira experiência francesa com redes de cabos de fibra ótica (experimento piloto Biarritz) e um outro que havia contribuído para o manual do usuário do sistema Minitel. Assim, a organização do projeto “co-optou” especialistas para produzir representações de usuário com base em sua experiência de relações de usuários em sistemas tecnológicos semelhantes.

Outros produtos

Uma outra opção para elicitar representações de usuário é adotar ou rejeitar representações presentes em produtos que tenham algo em comum com o projeto de inovação em questão. Isto assume a existência de relações entre as opções técnicas em consideração e os tipos de usuários do produto equivalente. A adoção ou rejeição de uma fórmula existente é em si uma decisão mais ou menos explícita sobre o tipo de usuário visado pela fórmula e seus gostos, expectativas, etc. Tomar uma tal decisão significa usar  a particular representação de usuário incorporada no produto comparável. Nós achamos exemplos disto em todos nossos três estudos de caso.

Desde seu início o projeto Securiscan, um sistema para controlar todos os tipos de aplicações domésticas, foi definido em oposição a sistemas existentes. O objetivo era desenvolver uma instalação “sem fio”, enquanto todas alternativas envolviam redes com fio[2]. Esta abordagem foi baseada no conceito de marketing de que fiação adicional constituía, sob critérios financeiros e estéticos, uma importante restrição a compra. Argumentava-se que o mercado expandiria significativamente uma vez que esta restrição fosse removida.

O fabricante dos telefones “Contact Ambiance” examinou opções de produtos que ele já havia fornecido a usuários do mundo dos negócios, algumas vezes incorporando as opções, algumas vezes as descartando. Por exemplo, recepção amplificada havia se tornado uma característica padrão de instalações comerciais e foi mantida para o modelo doméstico mais luxuoso. Esta decisão contrastava com a tendência geral de omitir a amplificação nesta ponta do mercado doméstico. No entanto, por razões não tornadas inteiramente claras, a amplificação do som precisou ser de melhor qualidade para os propósitos domésticos do que para os comerciais. Finalmente, a função “confidencial”, também um aspecto muito comum nas instalações comerciais (ela corta o microfone) foi omitida dos modelos domésticos com base no fato, assumido específico para este mercado, de que ela não cumpria propósito útil uma vez que os usuários não acreditavam nela e continuavam a tampar o microfone com suas mãos.

Finalmente, o teclado da unidade CA assim como o diálogo usuário - CA foi projetado na mesma linha do terminal Minitel, em oposição aos aparelhos de controle remoto de TV. Por exemplo, ele contem uma tecla rotulada “envoi” (usada para validar a instrução digitada)  a qual não tem correspondente nos controles de TV. O fato de que essas opções tenham sido tomadas quase sem discussão não é surpresa quando sabemos que os projetistas da unidade CA haviam trabalhado previamente no desenvolvimento do Minitel. Em cada estágio do projeto, eles estabeleceram as regras governando as interações entre o usuário e seu terminal e dessa forma incorporaram ao sistema um conceito particular dessas aptidões, quadros de referência, e padrões de comportamento do usuário[3].

Sumário

Sem pretender um relato exaustivo, nós fizemos um inventário de métodos empregados por projetistas de sistemas para desenvolver, promover, e impor uma particular representação de usuário. Nós tentamos mostrar que apesar de diferenças aparentes cada método visa articular e desenvolver representações de usuário. Nem todos os métodos revistos se equivalem em força. Ao contrário do que seria esperado e dito pelos projetistas, os métodos implícitos parecem ser mais poderosos do que os explícitos. Assim como também, diferentes métodos correspondem a diferentes problemas e circunstâncias. Nós queremos particularmente enfatizar o ponto que, mesmo que o uso do termo “usuário” tenda a sugerir o contrário, nenhuma das representações construídas é meramente a representação de uma faceta particular que o “usuário completo” pudesse apresentar numa dada situação. Deste ponto de vista, a qualidade não discriminante da palavra “usuário”, que é também um obstáculo para sua adequabilidade científica, bem ilustra a síntese incompleta entre todas as diferentes posturas oferecidas pelas representações técnicas empregadas e, algumas vezes materializadas em opções tecnológicas. O problema para o projeto bem sucedido assim como para a CTA é como lidar com essa proliferação de “usuários”, cada um dos quais corresponde a uma situação específica. Em algum ponto, se eles não se juntarem num todo, eles precisam pelo menos se tornar coerentes entre si.

A articulação das representações do usuário

Da racionalidade global para a local

Arbitrar entre diferentes representações do usuário as quais podem levar a tensões conflitantes, ou a manutenção de certas representações de usuário fora da moda, ao longo do processo de desenvolvimento, é um problema que os inovadores têm de lidar todo o tempo. Seria imprudente superestimar a racionalidade das escolhas feitas. Freqüentemente, elas são racionalizadas depois, quando a direção corporativa (ou a esse respeito os sociólogos) pede aos líderes do projeto para descrever como o projeto evoluiu. Situações de grave discordância, por exemplo, levando a questão para fora do laboratório ou das fronteiras da companhia, também impõem uma maior coerência na explanação.

Nós não deveríamos, no entanto, tomar essas decisões ad hoc como puramente arbitrárias. Cada uma delas pode, usualmente, ser justificada no nível local pela configuração num dado momento, isto é, as posições dos atores envolvidos, os fatores materiais em questão e a natureza do problema que reúne os atores. Ainda assim, a racionalidade local não pode explicar em todos os casos porque algumas características dos sistemas demonstravelmente relevantes foram ignoradas. Temos que olhar para a acumulação de decisões separadas as quais constroem um resultado que toma sua forma final apenas quando o processo todo é completo. Não há determinismo tecnológico absoluto algum no processo do projeto. Cada nova opção se baseia nas decisões tomadas em estágios anteriores, embora na maioria dos processos de projeto haja suficiente latitude para negligenciar (alguns) elementos das decisões anteriores.

Por exemplo, no caso da unidade CA, os usuários da TV a cabo em Montpellier ficaram surpresos e decepcionados porque eles não poderiam usar seus vídeos como antes. Eles encontraram três tipos de restrição. Em primeiro lugar, conectar a unidade CA, o aparelho de TV e o vídeo já não era uma tarefa simples. Algumas vezes isso envolvia trocar as conexões dependendo de se um programa era gravado ou era visto após ter sido gravado. Em segundo lugar, não era possível ver um outro programa que não o que estivesse sendo gravado. Em terceiro lugar, gravações pré-programadas (na ausência do usuário) implicavam em severas restrições. Quando tentamos explicar essas aparentes falhas de projeto, nos deparamos com uma situação paradoxal. Por um lado, uma multidão de decisões afetando aspectos separados da unidade CA pode explicar as falhas. Estas decisões ad hoc eram plenamente justificáveis na situação específica. Apenas a reconstrução pelo analista (auxiliado talvez pelas reclamações dos usuários finais) impõe uma seqüência coerente que leva a desqualificação do vídeo. Pelo outro lado, não pode ser dito que as falhas de projeto, e a subseqüente desclassificação, eram em algum momento uma intenção deliberada dos projetistas, ou poderiam ser antecipadas facilmente.

Isto levanta a questão de como simular um confronto entre diferentes representações de usuários na fase de projeto e desenvolvimento e, a partir daí, como arquitetar soluções de compromisso que assegurem sua superposição. No que se segue nós mostraremos que várias estratégias diferentes podem ser aplicadas para combinar e superpor representações de usuário separadas. Estas estratégias envolvem não apenas a realocação das responsabilidades de definição do produto, mas também um endurecimento dos objetos técnicos conduzido numa programação temporal muito diferente.

O acordo necessário sobre as representações de usuário implica o alinhamento de redes. Quando nós designamos o usuário como um “consumidor”, “assinante de telefone”, “morador de cidade”, “pai”, ou o que quer que seja, isto imediatamente evoca um quadro de todo um conjunto de atores, objetos e redes de relações que os mantêm reunidos. O termo “assinante de telefone” traz consigo objetos chamados “telefones”, cujo teclado está disposto numa forma particular, “atores” como o pessoal da administração da Telecom, contas feitas de uma determinada maneira (um componente fixo e taxas pro rata, etc.) e uma definição do relacionamento contratual e responsabilidades envolvidas. No caso da unidade CA, a referência “assinante de telefone” invoca todos esses aspectos diretamente ou por inferência. Conforme já foi dito pela teoria ator rede e mostrado para muitos casos, um novo sistema tecnológico terá sucesso apenas quando for capaz de atrair todo um universo: uma rede de relações sociotécnicas tem de ser reunidas, persuadidas, e enredadas. Em última análise, verificar a viabilidade da combinação de representações de usuário proposta significa determinar se um sistema é capaz de se relacionar harmoniosamente com as redes apropriadas, e assegurar que as várias implicações da proposição não são conflitantes e não introduzam tensões ou restrições intoleráveis. Isto nos remete às várias estratégias disponíveis para a obtenção do alinhamento da rede.

Alinhando as redes sociotécnicas

Três diferentes estratégias foram observadas no curso dos estudos de caso: 1) basear no próprio sistema tecnológico; 2) delegar a reconciliação das representações a intermediários pertencentes às redes sociotécnicas estabelecidas, e 3) “construir pontes” com redes postas no lugar concorrentemente ao desenvolvimento do sistema. Elas diferem segundo os meios básicos adotados com o propósito de reconciliar as várias facetas do usuário.

Delegar a tarefa de alinhamento ao sistema significa dotá-lo com vários aspectos físicos que o capacitam a assumir todas as funções que isso envolve. Esta foi a estratégia adotada, quase ao ponto de paroxismo, no caso da unidade CA. Poderia ser dito que os projetistas do sistema produziram uma máquina maravilhosa capaz de enfrentar uma extrema segmentação de mercado através de uma estreita diferenciação tanto dos produtos e como das características dos assinantes. Eles se basearam no exemplo do Minitel o qual pareceu sancionar uma forma de determinismo tecnológico. Eles falharam, no entanto, por não construir uma estrutura de suprimento capaz de dar uma forma própria a este novo tipo de mercado audiovisual. Desde seu início, o objetivo declarado do projeto era construir um sistema multimídia (som hi-fi, TV, transmissão de dados, telefone, etc.). Isto era tecnicamente viável apenas com o uso de fibras óticas. O sistema era interativo permitindo ao usuário comunicar-se com o operador da rede. Ele poderia acomodar uma faixa de escalas de preços (assinatura básica mais um grande número de opções) assim como também oferecer acesso restrito para serviços abertos apenas a categorias selecionadas de usuários (por exemplo, programas produzidos por companhias farmacêuticas e reservados para médicos). Esta configuração complexa significava que a unidade CA tinha que lidar com as transações em dois níveis, o técnico (seleção e recepção de programas pelo usuário conforme desejado) e o contratual (efetiva proteção dos serviços de acesso restrito, notificação clara do compromisso financeiro assumido ao assinar certos serviços). Os projetistas assim tiveram que fazer provisão de várias chaves de acesso (códigos numéricos) para uso geral, para admissão aos programas de acesso restrito ou pagos, e para prevenir o uso desautorizado da unidade.

A chave de acesso aos programas pagos não estava incluída no plano original, mas emergiu gradualmente como uma solução para um problema que os projetistas tiveram que enfrentar: como assegurar que um usuário reconhece seu débito quando firma um compromisso financeiro com o operador na rede? Como uma solução, os projetistas incorporaram na frente da unidade CA uma característica adicional, uma “tela de serviços pagos” a qual informa o usuário sobre o status das tarifas dos programas selecionados. O usuário indica sua aceitação das condições apresentadas pressionando duas vezes a tecla rotulada “envoi”. Isto é o equivalente formal da assinatura e assegura que as facetas do usuário espectador e consumidor coincidem. A segunda faceta cobre a relação do contrato com o operador da rede.

Uma vez resolvido este problema, outro problema surgiu: o consumidor já está definido por outro procedimento. A assinatura da ordem de subscrição e o procedimento adicional não garantem que esta assinatura seja do mesmo usuário que pressionou duas vezes a tecla “envoi”. A possível não coincidência desses dois atores pode acarretar dificuldades, por exemplo, quando assinantes contestam a conta cobrada. Os projetistas, então, acrescentaram uma “tecla de pagamento de acesso” que era oferecida aos usuários que a solicitassem, e cujo propósito era garantir a existência de uma pessoa legalmente responsável suportando o usuário que pressiona duas vezes a tecla “envoi”. Isto dá poder de decisão aos membros devidamente autorizados da casa, livremente escolhidos pelo signatário do contrato, com este último permanecendo o único responsável perante a rede e seu operador. Isto é uma ilustração particularmente clara da forma pela qual a estratégia adotada pelos projetistas da unidade tende a alcançar a coincidência de diferentes representações da entidade usuário pela incorporação de aspectos apropriados no próprio sistema tecnológico.

A abordagem “faixa de produtos” é uma outra forma de delegar a tarefa de reconciliação ao artefato. No caso que acabamos de discutir, um único artefato capaz de lidar com situações, expectativas e requerimentos muito diferentes teve de ser desenvolvido. Uma estratégia alternativa consiste em determinar conjuntos coerentes de características do usuário. Por exemplo, se é provável que o usuário comercial e o usuário doméstico não convirjam, uma abordagem bem sucedida pode ser desenvolver dois produtos, similares mas não idênticos, cada um especificamente adaptado ao respectivo tipo de usuário identificado.

De uma maneira geral, estratégias que delegam as funções de reconciliação ao hardware do sistema são baseadas num conceito de “determinismo tecnológico” do processo de inovação. Eles elevam o inovador a um status de semideus, capaz de antever e administrar as reações do usuário. O processo de identificar as representações de usuário é totalmente concentrado na fase de projeto. Isto envolve o risco (que, na França pelo menos, tem sido freqüentemente materializado) de se terminar com uma espécie de monstro tecnológico, extremamente sofisticado, mas inteiramente ineficaz porque incapaz de atrair os usuários para os quais ele foi projetado. Esta sofisticação excessiva não é devida ao puro amor pela tecnologia, cega às condições mundanas do mundo real, mas a uma determinação indiscriminada de que o sistema por si próprio deveria lidar com toda a infinita variedade de situações possíveis que ele pode ter de enfrentar.

A reconciliação de representações de usuários divergentes também pode ser delegada a intermediários, a segunda estratégia geral. Tais intermediários podem ser “outsiders” vistos como aptos a prover entrada para redes sociotécnicas estabelecidas. Estas redes são elas próprias identificadas pela circulação de itens (ou sistemas) especificados entre atores cujas próprias identidades são definidas em termos desse processo de circulação. Se tais redes são capazes de encaminhar o novo sistema na direção de seus prospectivos usuários, uma abordagem mútua tem de ser efetuada entre os usuários e o sistema. Esta é a tarefa que os intermediários tem que executar.

O sistema Securiscan usou uma estratégia deste tipo. Os projetistas começaram com a idéia de um produto high-tech adaptável a especificações de usuários individuais e distribuídos através de supermercados. Os projetistas logo verificaram que tal configuração assumia uma variedade de representações de usuário que era improvável de convergir num indivíduo. Essas representações eram aquelas do amante de novidades eletrônicas, viciados no “faça você mesmo”, a pessoa preocupada com segurança, o especialista em computador, o consumidor de supermercado, consumidores de renda média para alta, etc. Num estágio ainda bastante inicial tomou-se a decisão de abandonar a distribuição por supermercados e basear a distribuição em comerciantes convencionais que são melhor capacitados a sondar sua clientela. Os comerciantes iriam trabalhar com qualquer parte interessada visando chegar a uma configuração de sistema que correspondesse a seus requerimentos individuais, mantidos dentro dos limites das possibilidades técnicas. Além disso, eles instalavam o sistema, programavam sua implementação, proviam serviços pós-vendas, e encorajavam os usuários a estender suas instalações ao longo do tempo.

Uma estratégia desse tipo assume uma abordagem de projeto especial. Ela precisa permitir e capacitar o intermediário, após treinamento apropriado, a fazer os necessários ajustes entre o usuário e o sistema. Os projetistas do Securiscan tinham que satisfazer tanto o usuário querendo eficiência ótima no seu sistema de aquecimento, por exemplo, quanto outro usuário que tivesse medo de ladrões, ou que quisesse que seu gramado fosse regado em suas ausências, ou que quisesse que suas persianas se fechassem automaticamente, assim como qualquer combinação destes requerimentos. Como resposta a versão final do Securiscan é basicamente um sistema aberto compreendendo três tipos de componentes:

·           Uma unidade de programação central governando toda a instalação montada pelo intermediário;

·           Equipamentos para as aplicações finais (por exemplo, mecanismos de chaveamento com controle de portas ou torneiras);

·           Elementos de interface que transmitem as instruções da unidade central para as aplicações.

Ele era um sistema interativo. Os equipamentos aplicativos poderiam retornar informação (tal como as leituras do termostato) para a unidade central, que então tomava decisões. O exemplo acima mostra que a estratégia consiste em designar intermediários para organizar o lado da demanda, assegurando a convergência de diversas representações de usuário. Esta estratégia requer que o projeto do produto não seja prerrogativa exclusiva do pessoal envolvido na fase de projeto e desenvolvimento, e que os distribuidores precisam ser qualificados para fazer qualquer retoque de acabamento que seja necessário.

A última das três possíveis estratégias identificadas foi a criação de uma nova rede. Quando o telefone “Contact Ambiance” estava sendo lançado, aparelhos telefônicos não eram reconhecidos como itens de varejo no mercado Francês. Eles eram supridos pela French Telecom a todos novos assinantes e assim considerados como uma extensão natural da rede telefônica. O problema assim criado foi o de constituir a existência do “comprador de telefone”. Inicialmente, o fabricante pensou que o mero fato de que as pessoas compram produtos de todos os tipos era suficiente para assegurar que elas também comprariam os telefones. A intenção era vender os telefones “Contact  Ambiance” através das lojas de varejo de massa. No entanto, embora o telefone fosse um objeto familiar, um conjunto de problemas emergiu que não podia ser resolvido através desse estilo de marketing. Em supermercados, por exemplo, os telefones eram mostrados “desacompanhados”. Como poderiam os consumidores potenciais ser persuadidos que havia alguma vantagem em comprar telefones quando eles já eram supridos pela Telecom a um preço nominal e substituídos sem custo sempre que necessário? E como eles poderiam ser convencidos de que os produtos em exposição eram de um alto padrão e plenamente compatíveis com os planos de expansão do serviço telefônico, então em plena atividade? A estratégia adotada pelo fabricante focou em dois pontos principais: assegurar um status de aprovado para o “Contact Ambiance” por parte da Telecom; e criar uma rede especializada de vendas.

Neste caso nós não temos um puro exemplo de criação de uma rede específica porque aspectos da estratégia “intermediários” também estão presentes. O fabricante procurou superpor o “assinante de telefone” com o “comprador de telefone”  com a ajuda de uma rede existente: as agências de relações com o consumidor da Telecom cuja função era administrar as contas de assinantes no nível local. O fabricante fez disso uma rede de distribuição, treinando seu pessoal em técnicas de vendas, e os provendo com literatura de vendas e mostruários. Na medida em que a French Telecom não estava preparada para agir como um agente de vendas exclusivo de um fabricante, os competidores também poderiam usar as agências. Isso tinha a vantagem de apresentar uma faixa ampla de escolha e reforçar  a credibilidade de todos, assim como desencorajar a criação de redes rivais.

Neste exemplo particular, o produto não foi significativamente redefinido pelos atores a jusante do projetista original. Algumas mudanças foram feitas. Por exemplo, as folhas de instrução feitas inicialmente para ajudar o usuário só com seu novo instrumento, foram reescritas para abranger a interação entre o comprador leigo e o agente de vendas com conhecimento especializado em telecomunicações. A convergência das duas facetas de “assinante” e “comprador” foi obtida parcialmente através de ação combinada das redes administrativa e comercial, e parcialmente devida a crescente diversificação dos produtos, tanto em termos estéticos quanto funcionais.

Embora consideradas separadamente pela conveniência de descrição, as três estratégias revistas são raramente encontradas em suas formas puras, como aliás foi demonstrado pelo terceiro exemplo. Em geral, encontramos uma mistura de estratégias com ênfases variadas. A idéia de que um novo artefato pode por si próprio obter a convergência entre o universo de representações do usuário é nada mais do que uma fantasia de engenheiros. Da mesma forma, seria em vão pretender que um vendedor possa salvar um artefato que seja incapaz de sustentar alguma das relações que ele procura desenvolver. Desenvolver e incorporar as representações do usuário durante o estágio de projeto é, portanto, não meramente uma questão de formar uma imagem realista do usuário potencial. É acima de tudo uma questão de formar uma forte associação entre os objetivos tecnológicos e as estratégias de marketing. Em outras palavras, a obtenção da convergência de todas as diferentes representações de usuário envolve ter controle sobre os lados técnico e comercial, e agir na interface entre eles.

Conclusão

Os métodos empregados para trazer o usuário final para dentro do processo do projeto são variados. Eles todos definem formas de representar usuários, e cada um produz um quadro estilizado da situação. O principal problema para o projeto, e para CTA, não é tanto a multiplicação do número de abordagens e representações de usuário resultantes porque essas já abundam. Para fortalecer o processo de projeto pela incorporação de uma multiplicidade de representações, o principal desafio é coordenar a aplicação dos vários métodos e reconciliar seus resultados.

É portanto produtivo conceber ferramentas de avaliação que possam ser usadas para desenhar um diagrama para cada fase do projeto. O diagrama poderia mostrar todos os estados das representações do usuário, como eles foram construídos, e se eles são construídas sobre pressupostos “dados” pelas opções tecnológicas já aplicadas. O objetivo deste exercício é triplo: primeiramente, ele poderia verificar a coerência (e o potencial de consolidação) de todas as variadas representações de usuário ao longo do projeto. Em segundo lugar, a estratégia deveria monitorar continuamente formas potenciais de obtenção de convergência entre estados diversos da representação do usuário. Em terceiro lugar o exercício poderia ajudar a construir uma estratégia para posterior desenvolvimento do projeto. Para desenvolver um pouco mais essa parte de reconciliar representações de usuário diferentes, eu gostaria de enfatizar a estreita complementaridade das decisões relativas ao conteúdo técnico de um produto inovador e as decisões relativas às estratégias de marketing.

Para CTA é de especial importância achar formas de assegurar que certas representações de usuário – que de outra forma não seriam consideradas pelos inovadores e empreendedores – sejam levadas em conta. É possível que todos os métodos e recursos já em uso, incluindo incentivos fiscais e padrões, possam se sobrepor a representações de usuário negligenciadas. Além disso, as autoridades públicas poderiam identificar, criar e/ou usar vários mediadores entre inovadores e usuários finais para redefinir a demanda e assim permitir que novas representações de usuário sejam consideradas. Para implementar isso será necessário desenvolver uma sociologia do marketing e distribuição capaz de se tornar parte integral do processo de projeto, desenvolvimento e inovação.

De certa forma a redefinição da demanda já tem sido extensivamente trabalhada pelos economistas. Eles levantam o problema perguntando, quais mecanismos corrigiriam as falhas do mercado? No entanto a forma segundo a qual nós vemos estes mecanismos, e o lugar dado a diferentes atores no debate, pode ser consideravelmente transformado se nós estivermos conscientes da onipresença dos usuários no processo de concepção, e do principal problema resultante: como fazer as diferentes representações coerentes, ou, em outras palavras, como construir “interessement devices” (Callon, 1986, 1987) os quais permitem a articulação entre redes técnico-econômicas altamente heterogêneas.

Notas


[1] Projeto de pesquisa conjunto culminando num relatório editado por Dominique Boullier (1989).

[2] Significando que o novo sistema deveria ser capaz de trabalhar com a fiação já instalada no local.

[3] Padrões industriais também impõem certos pressupostos relativos a características do usuário. Uma vez adotados, eles deixam os projetistas com um escopo limitado para discussão.