ARTEFATOS TÊM POLÍTICA?

 

Reprodução livre, em Português Brasileiro, do texto original de Langdon Winner para fins de estudo, sem vantagens pecuniárias envolvidas. Todos os direitos preservados.

Free reproduction, in Brazilian Portuguese, of Langdon Winner’s original for study purposes.
No pecuniary advantagens involved. Copyrights preserved.

From: Langdon Winner – “Do Artifacts have Politics?” in __________. 1986.
“The Whale and the Reactor – A Search for Limits in an Age of High Technology”.
Chicago: The University of Chicago Press. p. 19-39.

(traduzido por Fernando Manso)

Não há idéia mais provocante nas controvérsias sobre tecnologia e sociedade do que a noção de que as coisas técnicas têm qualidades políticas. Em questão está a alegação de que máquinas, estruturas e sistemas da moderna cultura material podem ser precisamente julgados não apenas pela sua contribuição à eficiência e produtividade e pelos seus efeitos colaterais ambientais, positivos e negativos, mas também pelos modos pelos quais eles podem incorporar formas específicas de poder e autoridade. Uma vez que idéias desse tipo são uma presença persistente e problemática em discussões sobre o significado de tecnologia, elas merecem atenção explícita.

Escrevendo no início dos anos 1960, Lewis Mumford fez uma afirmação clássica sobre uma versão do tema, argumentando que “desde o final dos tempos neolíticos no Oriente Próximo até os dias de hoje, dois tipos de tecnologia têm coexistido recorrentemente: uma autoritária, a outra democrática, a primeira centrada em sistemas, imensamente poderosa, mas inerentemente instável, a outra centrada no homem, relativamente fraca mas flexível e durável.”[i] Esta tese se situa no coração dos estudos de Mumford sobre a cidade, a arquitetura, e a história das técnicas, e reflete preocupações manifestadas anteriormente nos trabalhos de Peter Kropotkin, William Morris, e outros críticos do industrialismo do século dezenove. Na década de 70, os movimentos anti-nucleares e favoráveis à energia solar na Europa e Estados Unidos adotaram uma noção similar como peça central de seus argumentos. Segundo o ambientalista Denis Hayes, “o emprego crescente de facilidades de  poder nuclear conduzirá a sociedade ao autoritarismo. Na verdade, uma confiança segura no poder nuclear como principal fonte de energia só será possível num estado totalitário.” Ecoando as visões de muitos proponentes de tecnologias apropriadas e de alternativas energéticas tranqüilas, Hayes argumenta que “fontes solares dispersas são mais compatíveis com a igualdade social, a liberdade e o pluralismo cultural do que as tecnologias centralizadas.”[ii]

O afã de interpretar os artefatos técnicos em linguagem política não é, de forma alguma, propriedade exclusiva dos críticos de sistemas de alta tecnologia e de grande escala. Uma grande linhagem de defensores entusiásticos têm insistido que o maior e melhor que a  ciência e a indústria tornaram disponíveis são as melhores garantias da democracia, da liberdade e da justiça social. O sistema fabril, o automóvel, o telefone, o rádio, a televisão, o programa espacial, e, é claro, o poder nuclear, todos estes foram em algum momento descritos como democratizadores, libertadores de forças.  T.V. A.: Democracy on the March, de David Lillienthal, por exemplo, encontrou essa promessa nos fertilizantes de fosfato e na eletricidade que o progresso técnico estava trazendo para a América rural durante os anos 1940. [iii] Três décadas mais tarde, A República da Tecnologia de Daniel Boorstin exaltou a televisão pelo “ seu poder de desmontar exércitos, de destituir presidentes, e de criar um mundo democrático inteiramente novo – democrático segundo formas nunca antes imaginadas, nem mesmo na América.”[iv] É raro que surja uma nova invenção e que alguém não a proclame como a salvação de uma sociedade livre.

Não nos causa surpresa saber que sistemas técnicos de vários tipos estão profundamente entrelaçados nas condições da política moderna. Os arranjos físicos da produção industrial, das guerras, das comunicações, e outros do gênero, têm alterado fundamentalmente o exercício do poder e a experiência da cidadania.

Mas ir além deste constatação óbvia e argumentar que certas tecnologias têm propriedades políticas nelas próprias parece num primeiro momento completamente equivocado. Todos nós sabemos que as pessoas têm política, não as coisas. Descobrir virtudes ou pecados em agregados de aço, plástico, transistores, elementos químicos, e outros materiais parece completamente equivocado, parece uma forma de mistificar os artifícios humanos e evitar as verdadeiras fontes, as fontes humanas de liberdade e opressão, justiça e injustiça. Culpar as coisas parece ainda mais despropositado do que culpar as vítimas quando se julga as condições da vida pública,

Daí, o austero conselho comumente dado àqueles que se deixam seduzir pela noção de que os artefatos técnicos têm propriedades políticas: O que importa não é a tecnologia em si, mas o sistema social ou econômico no qual ela está inserida. Esta máxima, a qual em si ou segundo variações é a premissa central de uma teoria que pode ser chamada de determinação social da tecnologia, tem uma sabedoria óbvia. Ela serve como um corretivo necessário para aqueles que estudam, sem o devido olhar crítico, coisas como “o computador e seus impactos sociais”, mas se esquecem de olhar, por trás dos dispositivos técnicos, as circunstâncias sociais de seu desenvolvimento, emprego e uso. Esta visão fornece um antídoto para o determinismo tecnológico leigo - a idéia que a tecnologia se desenvolve como resultado apenas de sua dinâmica interna, e então, não mediada por nenhuma outra influência, molda a sociedade segundo seus padrões. Os que não reconhecem os modos pelos quais as tecnologias são moldadas pelas forças sociais e econômicas não vão muito longe.

No entanto, o corretivo tem seus problemas. Tomado literalmente, ele sugere que as coisas técnicas não importam em nada. Uma vez feito o trabalho detetivesco necessário para revelar as origens sociais – os detentores do poder por trás de um caso particular de mudança tecnológica – ter-se-á explicado tudo o que há de importante. Esta conclusão é confortável para os cientistas sociais. Ela valida o que eles sempre suspeitaram: de que não há nada distintivo a respeito do estudo da tecnologia em primeiro lugar. E assim eles podem retornar a seus  modelos padrões de poder social -  políticas de grupos de interesse, políticas burocráticas, modelos marxistas das lutas de classes, e outros modelos – e terão tudo o que precisam. A determinação social da tecnologia não é, nessa visão,  essencialmente diferente da determinação social da, digamos, política do bem estar ou da política tributária.

Há, no entanto, boas razões para se acreditar que a tecnologia é politicamente significante por si própria, boas razões pelas quais os modelos padrões da ciência social não vão muito longe na explicação do que é mais interessante e problemático sobre o assunto. Muito do pensamento social e político moderno contem afirmações recorrentes do que poderia ser chamado de uma teoria de política tecnológica, uma estranha mistura de noções entrecruzadas freqüentemente com filosofias ortodoxas liberais, conservadoras e socialistas[v]. A teoria de política tecnológica chama atenção ao momentum dos sistemas sociotécnicos de grande escala, à resposta da sociedade moderna a certos imperativos tecnológicos, e às formas pelas quais as finalidades humanas são poderosamente transformadas na medida em que se adaptam aos meios técnicos. Esta perspectiva oferece um novo arcabouço de interpretação e explicação para alguns dos padrões mais intrigantes que tem se formado dentro e em torno do crescimento da moderna cultura material. Seu ponto de partida é uma decisão de se tomar os artefatos tecnológicos seriamente. Em vez de insistir que nós reduzamos tudo imediatamente ao jogo das forças sociais, a teoria da política tecnológica sugere que nós prestemos atenção às características dos objetos técnicos a aos significados dessas características. Um complemento necessário e não uma substituição das teorias da determinação social da tecnologia, esta abordagem identifica certas tecnologias como fenômenos políticos em si próprias. Ela nos aponta de volta, tomando emprestada a injunção filosófica de Edmund Husserl, às coisas em si.

No que se segue, eu delinearei e ilustrarei duas formas pelas quais os artefatos podem conter propriedades políticas. Primeiro, são instâncias nas quais a invenção, projeto ou arranjo de um dispositivo técnico ou sistema específico se torna uma maneira de resolver uma questão dentre os afazeres de uma comunidade particular. Vistos na própria luz, exemplos deste tipo são razoavelmente diretos e facilmente entendidos. Segundo, são casos daquilo que pode ser chamado de “tecnologias inerentemente políticas”: sistemas feitos pelo homem que parecem exigir ou ser fortemente compatíveis com tipos particulares de relações políticas. Argumentos sobre casos desse segundo tipo são muito mais problemáticos e mais próximos ao núcleo central do tema. Pelo termo  “política” eu quero significar arranjos de poder e autoridade nas associações humanas assim como as atividades que ocorrem dentro desses arranjos. Para meus objetivos aqui, o termo “tecnologia” significará todos os artifícios práticos modernos, mas para evitar confusões eu prefiro falar de “tecnologias” no plural, peças ou sistemas de hardware, maiores ou menores, de um tipo específico[vi] . Minha intenção não é resolver aqui alguma dessas questões de uma vez por todas, mas indicar suas dimensões e significâncias gerais.

Arranjos Técnicos e Ordem Social

Qualquer um que tenha viajado pelas estradas da América e tenha se acostumado a altura normal dos viadutos deve achar algo estranho a respeito dos viadutos sobre as vias em Long Island, Nova York. Muitos dos viadutos são extraordinariamente baixos, com apenas nove pés de espaço livre no meio fio. Mesmo aqueles que notem essa peculiaridade estrutural não estariam inclinados a lhe atribuir nenhum significado especial. No modo que usualmente olhamos coisas tais como estradas e pontes, vemos os detalhes de formas como inócuos e raramente lhes damos um segundo pensamento.

Acontece, no entanto, que há uma razão para os cerca de duzentos viadutos baixos em Long Island. Eles foram deliberadamente projetados e construídos desta forma por alguém que queria obter um particular efeito social. Robert Moses, o grande construtor de estradas, parques, pontes e outros trabalhos públicos dos anos 1920 aos 70 em Nova York, construiu esses viadutos segundo especificações que evitassem a presença de ônibus nas vias do parque. Segundo evidências fornecidas pelo biógrafo de Moses, Robert A. Caro, as razões refletem os preconceitos raciais e de classe social de Moses. Brancos proprietários de automóvel das classes “alta” e “média confortável”, como ele as chamava, poderiam usar as vias do parque para recreação ou passagem. Pessoas pobres e pretos, que normalmente usam transporte público, seriam mantidos fora das vias porque os ônibus de doze pés de altura não podiam passar sob os viadutos. Uma conseqüência foi limitar o acesso das minorias raciais e grupos de baixa renda a Jones Beach, o parque público mais largamente aclamado de Moses. Moses assegurou duplamente esse resultado, vetando uma proposta de extensão da Estrada de Ferro Long Island a Jones Beach.

A vida de Robert Moses é uma história fascinante na recente história política americana. Suas lidas com prefeitos, governadores, presidentes; sua cuidadosa manipulação das legislaturas, bancos, sindicatos, imprensa e opinião pública poderiam ser estudadas por cientistas políticos por anos. Mas os resultados mais importantes e duráveis de seu trabalho são suas tecnologias, os enormes projetos de engenharia que deram a Nova York muito de sua forma atual. Por gerações após a morte de Moses e o desmantelamento das alianças que ele construiu, seus trabalhos públicos, especialmente as estradas e pontes que ele construiu para favorecer o uso do automóvel sobre o desenvolvimento dos transportes de massa continuarão a moldar essa cidade. Muitas das suas monumentais estruturas de concreto e aço incorporam uma sistemática desigualdade social, uma forma de construir relações entre pessoas as quais, após um tempo, se tornam uma parte da paisagem. Como Lee Koppleman, um planejador de Nova York, disse a Caro sobre as pontes baixas na via Wantagh, “O velho bastardo assegurou que os ônibus nunca possam usar as malditas  vias do seu parque.”[vii]

Histórias de arquitetura, planejamento urbano e equipamentos públicos contém muitos exemplos de arranjos físicos com propósitos políticos explícitos ou implícitos. Pode-se apontar para as largas avenidas parisienses do Baron Haussmann, construídas sob a direção de Louis Napoleon para prevenir qualquer recorrência de brigas de rua, como as que aconteceram durante a revolução de 1848. Ou pode-se visitar inúmeros grotescos prédios de concreto e as enormes praças construídas nos campi universitários nos Estados Unidos, nos finais dos anos 60 e início dos anos 70, para evitar as demonstrações de estudantes. Estudos de instrumentos e máquinas industriais também revelam interessantes histórias políticas, incluindo algumas que violam nossa expectativa normal sobre por que inovações tecnológicas são feitas, em primeiro lugar. Se nós supomos que novas tecnologias são introduzidas para se aumentar a eficiência, a história da tecnologia mostra que nós nos desapontaremos algumas vezes. Mudanças tecnológicas expressam uma vasta gama de motivações humanas, dentre as quais o desejo de alguns de dominar outros, mesmo que isso exija um ocasional sacrifício na redução de custos e alguma violação do padrão normal do se tentar obter mais do menos.

Uma ilustração dolorosa pode ser achada na história da mecanização industrial do século 19. No meio dos anos 1880, na Cyrus McCormick, uma fábrica de ceifeiras em Chicago, introduziram-se máquinas moldadoras a ar comprimido, uma inovação ainda não devidamente testada, a um custo estimado de $500.000. A interpretação econômica padrão nos levaria a esperar que essa etapa tivesse sido tomada para modernizar a fábrica e obter o tipo de eficiência que a mecanização traz. No entanto, o historiador Robert Ozanne pôs o desenvolvimento num contexto mais amplo. Naquele tempo, Cyrus McCormick II estava envolvido em uma briga com o Sindicato Nacional dos Moldadores de Ferro. Ele viu a introdução das novas máquinas como uma forma de “se livrar dos maus elementos entre os homens”, quais sejam, os trabalhadores habilitados que haviam organizado o sindicato local em Chicago.[viii] As novas máquinas, operadas por trabalhadores menos habilitados, produziram fundições inferiores e mais caras que o processo anterior. Após três anos de uso as máquinas foram abandonadas, mas a esse tempo elas já haviam cumprido seu propósito: a destruição do sindicato. Assim, a história desses desenvolvimentos técnicos na fábrica McCormick não pode ser adequadamente entendida sem se levar em conta as tentativas dos trabalhadores de se organizarem, a repressão policial ao movimento trabalhador em Chicago durante aquele período, e os eventos em torno das explosões em Haymarket Square. A história da tecnologia e a história política dos Estados Unidos estavam naquele momento profundamente entrelaçadas.

Nos exemplos das baixas pontes de Moses e das máquinas moldadoras de McCormick, pode-se ver a importância de arranjos técnicos que precedem o uso das coisas em questão. É óbvio que tecnologias podem ser usadas em formas que favoreçam o poder, a autoridade e o privilégio de uns sobre outros, por exemplo o uso da televisão para vender um candidato. Na nossa forma habitual de pensar, tecnologias são vistas como ferramentas neutras que podem ser bem ou mal usadas, para o bem ou para o mal, ou algo intermediário. Mas, usualmente,  não paramos para pensar que um dado dispositivo possa ter sido projetado e construído de tal forma que ele produza um conjunto de conseqüências lógica e temporalmente anteriores a qualquer dos seus usos explícitos. As pontes de Moses, afinal de contas, foram usadas para passagem de automóveis. As máquinas de McCormick foram usadas para fundir metais. No entanto ambas as tecnologias incluíam propósitos além de seus usos imediatos. Se a nossa linguagem moral e política para avaliar tecnologias incluir apenas categorias relativas a ferramentas e usos, se ela não incluir atenção ao significado dos projetos e arranjos de nossos artefatos, então ficaremos cegos a muito do que é intelectualmente e praticamente crucial.

Uma vez que o ponto é mais facilmente entendido sob a luz de intenções particulares incorporadas na forma física, eu ofereci até o momento ilustrações que parecem quase conspirativas. Mas para reconhecer as dimensões políticas na forma da tecnologia não exige que procuremos por conspirações conscientes ou intenções maliciosas. O movimento organizado das pessoas deficientes nos anos 70 nos Estados Unidos apontou inúmeras formas pelas quais máquinas, instrumentos, e estruturas de uso comum - ônibus, prédios, passeios, utensílios urbanos, e outras do gênero - tornavam impossível para muitas pessoas deficientes circular livremente, uma condição que sistematicamente as excluía da vida pública. É seguro dizer que os projetos inadequados aos deficientes eram mais devidos a uma antiga negligência do que a uma intenção ativa de alguém. Uma vez trazida a questão a atenção pública, tornou-se evidente que a justiça exigia um remédio. Uma ampla gama de artefatos foram reprojetados e reconstruídos para atender a essa minoria.

Na verdade, a maioria dos exemplos mais importantes de tecnologias que têm conseqüências políticas transcendem as categorias simples do “intencional” e do “não intencional”. Esses são instâncias nas quais o próprio processo do desenvolvimento técnico já está tão completamente direcionado que ele produz resultados exaltados como maravilhosos para  alguns interesses sociais e catastróficos para outros. Nesses casos não seria correto nem adequado dizer que “alguém teve a intenção de prejudicar uma outra pessoa”. Em vez disso seria preciso dizer que a plataforma tecnológica já havia sido disposta anteriormente para favorecer certos interesses sociais e que algumas pessoas estavam destinadas a receber uma ajuda melhor do que outras.

A colhedeira mecânica de tomates, um extraordinário dispositivo aprimorado pelos pesquisadores da Universidade da Califórnia desde o fim dos anos 40 até hoje oferece uma história ilustrativa. A máquina é capaz de colher tomates numa única passagem  por uma fileira cortando as plantas a partir do solo, balançando as frutas, e (nos modelos mais novos) classificando os tomates eletronicamente em grandes gôndolas plásticas com capacidade de 25 toneladas que seguem diretamente para as fábricas de enlatamento. Para acomodar o movimento brusco dessas colhedeiras no campo, os pesquisadores agrícolas desenvolveram novas variedades de tomates mais duros, mais robustos e menos saborosos que os anteriores. A colhedeira substitui o sistema de colheita manual no qual as equipes de trabalhadores passavam três ou quatro vezes pela plantação colhendo os tomates maduros e reservando os tomates ainda verdes para uma colheita posterior[ix]. Estudos na Califórnia indicaram que o uso da máquina reduziu os custos em aproximadamente cinco a sete dólares por tonelada com relação a colheita manual[x]. Mas os benefícios não foram, de forma alguma, igualmente divididos na economia agrícola. Na verdade, neste caso, a máquina provocou uma forte alteração nas relações sociais envolvidas na produção de tomate na Califórnia rural.

Em virtude de seu tamanho e custo de mais de $50,000, as máquinas só eram compatíveis com uma forma altamente concentrada de produção. Com a introdução do novo método de colheita, o número de plantadores caiu de aproximadamente 4000, no início dos anos 60, para cerca de 600, em 1973, ao mesmo tempo em que houve um aumento substancial nas toneladas de tomate produzido. Estima-se que, ao final da década de 70, 32.000 empregos na indústria do tomate tenham sido eliminados como uma conseqüência direta da mecanização[xi]. Assim, o aumento na produtividade que beneficiou os grandes plantadores se deu às custas do sacrifício de outras comunidades agrícolas.

A pesquisa e desenvolvimento em máquinas agrícolas, tais como a colhedeira de tomates, da Universidade da Califórnia sofreu posteriormente um processo movido por procuradores da Assistência Rural Legal da Califórnia, uma organização representando um grupo de trabalhadores de fazendas e outras partes interessadas. O processo acusava a Universidade de gastar dinheiro público em projetos que beneficiavam uns poucos interesses privados em detrimento dos trabalhadores rurais, dos fazendeiros de pequeno porte, dos consumidores, e da Califórnia rural em geral, e solicitava que a corte interviesse para interromper a prática. A Universidade negou essas acusações, argumentando que aceitá-las “exigiria eliminar toda pesquisa que tivesse algum potencial de aplicação prática”[xii].

Até onde eu sei, ninguém argumentou que o desenvolvimento da colhedeira de tomate fosse o resultado de uma conspiração. Dois estudantes da controvérsia, Willian Friedland e Amy Barton, especificamente  absolveram os desenvolvedores originais da máquina e do tomate robusto de qualquer desejo de facilitar a concentração econômica nesta indústria[xiii]. Ao contrário, o que podemos ver neste caso é um processo social em curso no qual o conhecimento científico, a invenção tecnológica, e o lucro corporativo reforçam-se mutuamente em padrões profundamente entrelaçados, padrões que carregam o inequívoco selo do poder econômico e político. Por muitas décadas, a pesquisa e o desenvolvimento agrícolas nos colégios e universidades americanas tem favorecido os interesses dos grandes negócios agrícolas[xiv]. É em face de tais padrões sutilmente enraizados que os oponentes de inovações tais como a colhedeira de tomates são feitos parecer  “anti-tecnologia” ou “anti-progresso”. A colhedeira não é meramente o símbolo de uma ordem social que beneficia alguns e pune outros; ela é, na verdade, uma corporificação dessa ordem.

Dentro de uma dada categoria de mudança tecnológica há, a grosso modo, dois tipos de escolha que podem afetar a distribuição relativa de poder, autoridade e privilégio numa comunidade. Freqüentemente a decisão crucial é a simples escolha “sim ou não” - vamos desenvolver e adotar a coisa ou não? Em anos recentes muitas disputas locais, nacionais e internacionais sobre tecnologias têm se centrado em julgamentos do tipo “sim ou não” sobre coisas como aditivos alimentares, pesticidas, construção de rodovias, reatores nucleares, represas, e armas high-tech. A escolha fundamental sobre um míssil anti-balístico ou transporte supersônico é se a coisa vai se agregar à sociedade como uma peça de seu equipamento operacional ou não. As razões dadas contra e a favor são freqüentemente tão importantes como aquelas relativas a adoção de uma importante nova lei.

Uma segunda faixa de escolhas, igualmente críticas em muitos casos, tem a ver com aspectos específicos do projeto ou arranjo do sistema técnico após a decisão de aceitação já ter sido tomada. Mesmo após uma dada companhia ganhar a permissão para a construção de um grande linha elétrica, podem surgir importantes controvérsias sobre a localização de sua rota e o projeto das torres; após uma dada empresa ter decidido adotar um sistema de computadores, podem surgir controvérsias quanto aos tipos de componentes, programas, modos de acesso, e outros aspectos específicos que o sistema incluirá. A colhedeira mecânica de tomates já havia sido desenvolvida em sua forma básica quando uma alteração de projeto de significação social crítica - o acréscimo dos classificadores eletrônicos, por exemplo – alterou o caráter dos efeitos da máquina na distribuição de poder na agricultura da Califórnia. Algumas das mais interessantes pesquisas em tecnologia e política tentam demonstrar, numa forma detalhada e concreta, como aspectos de projeto, aparentemente inócuos, em sistemas de trânsito, projetos de água, maquinaria industrial e outras tecnologias, mascaram escolhas sociais de profunda significação. O historiador David Noble estudou dois tipos de sistemas de ferramentas automatizadas que têm diferentes implicações para o poder relativo da gerência e dos trabalhadores nas indústrias que podem empregá-las. Ele mostrou que embora os componentes básicos eletrônicos e mecânicos do “record/playback” e dos sistemas de controle numérico sejam similares, a escolha de um projeto em vez do outro tem conseqüências cruciais para as lutas sociais no chão da fábrica. Ver o assunto apenas em termos de redução de custos, eficiência, ou modernização de equipamento é deixar de lado um elemento decisivo na história[xv].

A partir desses exemplos eu ofereceria algumas conclusões gerais. Estas correspondem a interpretação de tecnologias como “formas de vida” apresentada nos capítulos anteriores, preenchendo as dimensões explicitamente políticas desse ponto de vista.

As coisas que nós chamamos tecnologias são formas de construir ordem em nosso mundo. Muitos dispositivos ou sistemas técnicos importantes na vida quotidiana contém diversas possibilidades de ordenar a atividade humana. Conscientemente ou inconscientemente, deliberadamente ou inadvertidamente, as sociedades escolhem tecnologias que influenciam, por um longo tempo, como as pessoas vão trabalhar, se comunicar, viajar, consumir, e assim por diante. No processo pelo qual as decisões estruturantes são feitas, diferentes pessoas estão diferentemente situadas e possuem diferentes graus de poder assim como diferentes níveis de consciência. De longe, a maior latitude de escolha existe no primeiro momento em que uma técnica, sistema ou instrumento particular é introduzido. Uma vez que os compromissos iniciais são assumidos, as escolhas tendem a se tornar fortemente fixadas no equipamento material, no investimento econômico e no hábito social, e assim, a flexibilidade original desaparece para qualquer propósito prático. Neste sentido, inovações tecnológicas são similares a atos legislativos ou ações políticas básicas que estabelecem uma estrutura de ordem pública que pode durar por muitas gerações. Por esta razão, a mesma atenção cuidadosa que é dada às regras, papéis e relações da política devem também ser dadas a coisas tais como a construção de rodovias, a criação de redes de televisão, e a customização de aspectos aparentemente insignificantes em novas máquinas. As questões que dividem ou juntam pessoas na sociedade são resolvidas não apenas nas instituições e práticas da política como tal, mas também, e menos obviamente, em arranjos tangíveis de aço e concreto, fios e  semi-condutores, porcas e parafusos.

Tecnologias Inerentemente Políticas

Nenhum dos argumentos e exemplos considerados até o momento endereça uma alegação mais forte e problemática, feita freqüentemente em estudos sobre tecnologia e sociedade: a crença de que algumas tecnologias são, pela sua própria natureza, políticas numa forma específica. Segundo esta visão, a adoção de um dado sistema técnico traz junto, inevitavelmente, condições para relações humanas de distintos tipos políticos, por exemplo, centralizadas ou descentralizadas, igualitárias ou diferenciadas, repressivas ou liberais. Isto é, em última análise, o que está em questão em alegações tais como as de Lewis Mumford de que coexistem na história Ocidental duas tradições de tecnologia, uma autoritária, a outra democrática. Em todos os casos que vimos até o momento, as tecnologias são relativamente flexíveis em projetos e arranjos e variáveis em seus efeitos. Embora podemos reconhecer resultados particulares em aplicações particulares das tecnologias, podemos facilmente imaginar que um dispositivo ou sistema parecido poderia ter sido construído ou situado com conseqüências políticas muito diferentes. A idéia que precisamos examinar agora é a de que certos tipos de tecnologia não tem essa flexibilidade e que escolhê-las significa escolher, inalteravelmente, uma forma particular de vida política.

Uma afirmação extraordinariamente enérgica de uma versão deste argumento aparece num pequeno ensaio de Friedrich Engels “On Authority”, escrito em 1872. Respondendo aos anarquistas que acreditavam que a autoridade é um mal que deveria ser abolido, Engels se lança numa defesa elogiosa do autoritarismo, argumentando, entre outras coisas, que uma autoridade forte é uma condição necessária à indústria moderna. Para expor seu caso na forma mais forte possível ele pede a seus leitores que imaginem que a revolução já tivesse ocorrido.  “Supondo que a revolução social tivesse destronado os capitalistas, quem agora exerceria a autoridade sobre a produção e a circulação de bens? Supondo, para adotar inteiramente o ponto de vista do antiautoritarismo, que as terras e os instrumentos de trabalho tivessem se tornado propriedade coletiva dos trabalhadores que os usam. A autoridade teria desaparecido, ou teria apenas mudado sua forma?”[xvi]

Sua resposta se baseia em lições tiradas de três sistemas sociotécnicos de seus dias: fábricas de fiação de algodão, estradas de ferro e navios. Ele observa que, no seu caminho para se tornar um fio acabado, o algodão se move através de várias operações diferentes em diferentes lugares dentro da fábrica. Os trabalhadores realizam uma ampla variedade de tarefas desde operar a máquina a vapor até carregar os produtos entre as salas. Uma vez que essas tarefas precisam ser coordenadas e uma vez que o “timing” do trabalho é fixado pela autoridade do vapor, os trabalhadores tem de aprender a aceitar uma rígida disciplina. Segundo Engels, eles tem de trabalhar em horários regulares e concordar em subordinar suas vontades individuais às pessoas responsáveis pela operação da fábrica. Se eles assim não fizerem, eles se arriscam a terrível possibilidade de que a produção venha a parar. Engels não economiza argumentos: “A maquinaria automática de uma grande fábrica é muito mais despótica que os pequenos capitalistas que empregam trabalhadores jamais o foram.”[xvii]

Similares lições são extraídas da  análise de Engels sobre as necessárias condições operacionais das estradas de ferro e dos navios. Em ambos os casos é exigida uma subordinação dos trabalhadores a uma “autoridade imperiosa” que verifica se as coisas acontecem segundo um plano. Engels descobre que, longe de ser uma idiossincrasia da organização social capitalista, relações de autoridade e subordinação acontecem “independentemente da organização social, [e] nos são impostas junto com as condições materiais sobre as quais produzimos e fazemos os produtos circular.” Novamente, ele pretende que isso seja um conselho severo aos anarquistas que, segundo Engels, pensavam que seria possível simplesmente erradicar a subordinação e a autoridade de um só golpe. Todos esquemas desse tipo não fazem sentido. As raízes do autoritarismo inevitável estão, ele argumenta, profundamente implantadas no envolvimento humano com ciência e tecnologia. Se o homem, por graça de seu conhecimento ou gênio inventivo, domesticou as forças da natureza, para que ele as empregue, a natureza domesticada se vinga, submetendo-o a um verdadeiro despotismo, independentemente da organização social[xviii].

Tentativas de justificar a autoridade com base nas condições supostamente necessárias à prática técnica tem uma história antiga. Um tema central na República é o argumento platônico de tomar emprestado a autoridade da techne e empregá-la por analogia para suportar seus argumentos em favor da autoridade do estado. Entre as ilustrações que ele escolhe, assim como Engels, está o do navio em alto mar. Na medida em que grandes navios pela sua própria natureza precisam ser dirigidos por uma mão firme, os marinheiros precisam obedecer aos comandos de seu capitão; nenhuma pessoa razoável acredita que navios possam ser dirigidos democraticamente. Platão sugere que governar um estado é como ser capitão de um navio ou como praticar medicina como um médico. Muitas das mesmas condições que requerem um papel central e ação decisiva na atividade técnica organizada também criam essa necessidade no governo.

No argumento de Engels, e em outros argumentos como esse, a justificativa da autoridade não é mais feita pela clássica analogia platônica, mas diretamente com referência à tecnologia em si. Se o caso básico é tão obrigatório como Engels acredita ser, poder-se-ia esperar que na medida em que uma sociedade adotasse sistemas técnicos de complexidade crescente como sua base material, os prospectos de formas de vida autoritária seriam em muito aumentados. Controle centralizado por especialistas agindo no topo de rígidas hierarquias sociais pareceria crescentemente mais prudente. A esse respeito sua posição no “On Authority” difere da posição de Marx, assim expressa no volume I do Capital. Marx tenta mostrar que a crescente mecanização tornará obsoleta a divisão hierárquica do trabalho e as relações de subordinação que, em sua opinião, foram necessárias durante os primeiros estágios da manufatura moderna. Diz Marx: “a indústria moderna faz desaparecer por meios técnicos a divisão do trabalho manufatureiro, sob a qual cada um está de mãos e pés atados pela vida a uma simples operação. Ao mesmo tempo, a forma capitalista dessa indústria reproduz essa mesma divisão de trabalho numa forma ainda mais monstruosa na própria fábrica, convertendo o trabalhador num apêndice vivo da máquina”[xix]. Na visão de Marx, as condições que viriam a dissolver a divisão capitalista do trabalho e facilitaria a revolução proletária eram condições latentes na própria tecnologia industrial. Essas diferenças entre a posição de Marx no Capital  e de Engels em seu ensaio levantam uma importante questão para o socialismo. O que, afinal de contas, a moderna tecnologia torna possível ou necessário na vida política? A tensão teórica que vemos aqui reflete muitos problemas na prática da liberdade e da autoridade que tem atrapalhado a trajetória da revolução socialista.

Argumentos sobre os efeitos de que tecnologias são, de alguma forma, inerentemente políticas têm sido postos numa ampla variedade de contextos, ampla demais para ser sumariada aqui. Minha leitura de tais noções, no entanto, revela que há duas maneiras básicas de dispor o caso. Uma versão argumenta que a adoção de um dado sistema técnico exige a criação e a manutenção de um conjunto particular de condições sociais como ambiente operacional do sistema. Essa é a posição de Engels. Uma visão similar é oferecida por um escritor contemporâneo que dispõe que “se você aceita usinas nucleares, você também aceita uma elite técnica-científica-industrial-militar. Sem essas pessoas no comando, você não poderia ter energia nuclear”[xx]. Nesta concepção alguns tipos de tecnologia exigem que seus ambientes sociais sejam estruturados numa forma particular da mesma forma que um carro exige rodas para se mover. A coisa não poderia existir como uma entidade que operasse efetivamente a menos que certas condições sociais, assim como materiais, fossem atendidas. O significado do “exigido” aqui é de uma necessidade prática (em vez de lógica). Assim, Platão pensava que era uma necessidade prática que um navio no mar tivesse um capitão e uma tripulação inquestionavelmente obediente.

Uma segunda versão do argumento, algo mais fraca, sustenta que um dado tipo de tecnologia é fortemente compatível com relações sociais e políticas de um dado tipo, mas não as exige. Defensores da energia solar argumentam que tais tecnologias são mais compatíveis com uma sociedade democrática e igualitária do que sistemas de energia baseados em carvão, óleo e força nuclear, mas ao mesmo eles não sustentam que qualquer coisa sobre energia solar exija democracia. Seu caso é , brevemente, que a energia solar é descentralizadora tanto no sentido técnico como político: falando tecnicamente, é muito mais razoável construir sistemas solares numa forma desagregada e amplamente distribuída do que em plantas centralizadas em grande escala; falando politicamente, energia solar acomoda as tentativas de indivíduos e comunidades locais de administrar seus negócios efetivamente porque eles estão lidando com sistemas que são mais acessíveis, compreensíveis e controláveis do que as enormes fontes centralizadas. Nesta visão a energia solar é desejável não apenas por seus benefícios econômicos e ambientais, mas também pelas instituições salutares que ela provavelmente vai permitir em outras áreas da vida pública[xxi].

Dentro de ambas versões do argumento, há uma outra distinção a ser feita entre condições internas ao funcionamento de um dado sistema técnico por um lado, e condições externas, por outro. A tese de Engels se ocupa das relações sociais internas, as quais são ditas serem exigidas em fábricas de algodão e estradas de ferro, por exemplo. O que tais relações significam para a sociedade como um todo é para ele uma outra questão. Em contraste, a crença dos defensores da energia solar de que as tecnologias solares são compatíveis com democracia implica que elas complementam aspectos da sociedade separados da organização dessas próprias tecnologias.

Há portanto várias direções diferentes que argumentos deste tipo podem seguir. As condições sociais são consideradas exigidas, ou fortemente compatíveis com o funcionamento de um dado sistema técnico? São essas condições internas ou externas ao sistema  (ou ambas)? Embora a maior parte dos estudos a respeito do tema não seja claro a respeito do que está sendo alegado, argumentos nessa categoria geral são parte importante do moderno discurso político. Eles se apresentam como tentativas de explicar como as mudanças na vida social ocorrem na esteira das  inovações tecnológicas. Mais importante que isso, eles são usados para embasar as tentativas de justificar ou criticar cursos de ação envolvendo novas tecnologias. Oferecendo razões distintamente políticas a favor ou contra a adoção de uma tecnologia particular, argumentos deste tipo se distinguem dos mais usualmente empregados, argumentos mais facilmente quantificáveis sobre custos e benefícios econômicos, impactos ambientais, e possíveis riscos à saúde e segurança  públicas que os sistemas técnicos podem envolver. A questão aqui não se refere a quantos empregos serão criados, a quanta renda será gerada,  a quantos poluentes adicionados, ou a quantos cânceres serão produzidos. Em vez disso, a questão tem a ver com modos pelos quais escolhas sobre tecnologia tem importantes conseqüências sobre a forma e a qualidade das associações humanas.

Se examinarmos os padrões sociais que caracterizam os ambientes de sistemas técnicos, descobriremos que certos dispositivos e sistemas quase sempre se ligam a formas específicas de organização de poder e autoridade. A questão importante é: essas formas derivam de uma inevitável resposta social a propriedades intratáveis das coisas em si, ou, em vez disso, essas formas são um padrão imposto independentemente por um corpo governante, pela classe dominante, ou alguma outra instituição social ou cultural para atender seus próprios propósitos?

Tomando o exemplo mais óbvio, a bomba atômica é um artefato inerentemente político. Na medida em que ela simplesmente exista, suas propriedades letais exigem que ela seja controlada por uma cadeia de comando centralizada, rigidamente hierárquica, e fechada a todas influências que possam tornar seu funcionamento imprevisível. O sistema social interno da bomba tem de ser autoritário; não há outra forma. Esse estado de coisas é uma necessidade prática independente do sistema político no qual a bomba esteja inserida, independente do tipo de regime ou caráter de seus governantes. Na verdade, os estados democráticos precisam tentar achar formas de assegurar que as estruturas sociais e mentalidade que caracterizam a gestão das armas  nucleares não transbordem e se derramem sobre a política como um todo.

A bomba é, evidentemente, um caso especial. As razões pelas quais relações de autoridade muito rígidas são necessárias na sua presença imediata devem ser claras a todos. Se, no entanto, nós procuramos outros casos nos quais variedades particulares de tecnologias sejam amplamente percebidas como exigentes da manutenção de um padrão especial de poder e autoridade, a história da técnica moderna contém uma profusão de exemplos.

Alfred Chandler em The Visible Hand, um estudo monumental do empreendimento moderno, apresenta impressiva documentação em defesa da hipótese de que a construção e a operação quotidiana de muitos sistemas de produção, transporte e comunicação nos séculos 19 e 20 exigem o desenvolvimento de uma forma social particular: organizações grandes, centralizadas e hierárquicas administradas por gerentes altamente especializados. Típico do raciocínio de Chandler é sua análise do crescimento das estradas de ferro[xxii].

“A tecnologia tornou possível o transporte rápido, com qualquer tempo; mas o movimento de bens e passageiros seguro, regular e confiável, assim como a contínua manutenção e reparo das locomotivas, dormentes, trilhos, leito da estrada, estações, galpões oficina, e outros equipamentos, exigiu a criação de uma enorme organização administrativa. Isto significou o emprego de um conjunto de gerentes para supervisionar estas atividades funcionais em extensas áreas geográficas; e a nomeação de um comando administrativo de executivos de topo e intermediários para monitorar, avaliar e coordenar o trabalho dos gerentes responsáveis pela operação do dia a dia.”

Ao longo do livro, Chandler aponta modos pelos quais tecnologias usadas na produção e distribuição de eletricidade, compostos químicos e uma vasta gama de bens industriais, “demandam” ou “exigem” essa forma de associação humana. “Assim, os requerimentos operacionais das estradas de ferro demandaram a criação das primeiras hierarquias administrativas nos negócios americanos.”[xxiii]

Havia outras formas concebíveis de organizar estes agregados de pessoas e coisas? Chandler mostra que a forma social dominante anterior, a tradicional pequena firma familiar, simplesmente não poderia suportar a tarefa na maior parte dos casos. Embora ele não vá muito além, fica claro que ele acredita que há muito pouca latitude nas formas de poder e autoridade apropriadas aos modernos sistemas sociotécnicos. As propriedades de muitas tecnologias modernas, como oleodutos e refinarias, por exemplo, são tais que economias de escala e velocidades impressionantes são possíveis. Para que tais sistemas funcionem efetivamente, eficientemente, rapidamente, e com segurança, certos requerimentos de organização social interna têm de ser preenchidos; as possibilidades materiais que as modernas tecnologias tornam disponíveis não poderiam ser exploradas de outra forma. Chandler reconhece que na medida em que se comparam instituições sociotécnicas de diferentes nações, vêem-se “formas segundo as quais atitudes culturais, valores, ideologias, sistemas políticos, e estruturas sociais afetam esses imperativos.”[xxiv] Mas o peso do argumento e da evidência empírica no The Visible Hand sugere que qualquer afastamento do padrão seria, na melhor das hipóteses, altamente improvável.

Pode ser que outros arranjos concebíveis de poder e autoridade, por exemplo, aqueles do trabalhador autogerido, democrático, e descentralizado, se mostrem capazes de administrar fábricas, refinarias, sistemas de comunicação, e estradas de ferro, tão bem ou melhor do que as organizações descritas por Chandler. Evidências vindas de equipes de montagem de automóveis na Suécia, de fábricas gerenciadas por trabalhadores na Iugoslávia e outros países são freqüentemente apresentadas para admitir essas possibilidades. Incapaz de resolver aqui essa controvérsia, eu meramente aponto para o que considero o núcleo da questão. A evidência disponível tende a mostrar que muitos sistemas tecnológicos grandes e sofisticados são de fato altamente compatíveis com controle gerencial hierárquico e centralizado. A questão interessante, no entanto, tem a ver com o seguinte. É esse padrão, em algum sentido, um requerimento dos sistemas ou não? A questão não é somente empírica. A questão, em última análise, baseia-se nos nossos julgamentos sobre quais etapas são praticamente necessárias para o funcionamento de um tipo particular de tecnologia e o que essas etapas requerem da estrutura de associações humanas? Estava Platão certo ao dizer que um navio no mar precisa ser dirigido por uma mão decisiva e que isto só poderia ser obtido por um único capitão e uma tripulação obediente? Está Chandler correto ao dizer que as propriedades dos sistemas de grande escala exigem controle gerencial centralizado e hierárquico?

Para responder essas questões teremos que examinar em algum detalhe os argumentos morais de necessidade prática (incluindo aqueles defendidos pelas doutrinas econômicas) e pesá-los contra os argumentos morais de outros tipos, por exemplo, a noção de que é bom para um marinheiro participar do comando do navio, ou de que trabalhadores tem o direito de se envolver nas tomadas e administrações de decisões de uma fábrica. É característica das sociedades baseadas em grandes e complexos sistemas tecnológicos, no entanto, que argumentos morais de outros tipos que não os de necessidade prática aparecem cada vez mais obsoletos, “idealistas” e irrelevantes. Qualquer alegação que alguém queira fazer em nome da liberdade, justiça ou igualdade pode ser imediatamente neutralizada quando confrontada com argumentos sobre o efeito: “tudo bem, mas não há outra maneira de fazer uma estrada de ferro funcionar” (ou uma siderúrgica, ou uma companhia de aviação aérea, ou um sistema de comunicação). Aqui encontramos uma importante qualidade do moderno discurso político, e na forma segundo a qual as pessoas pensam comumente sobre quais medidas são justificadas em resposta às possibilidades que as tecnologias tornam disponíveis. Em muitos casos, dizer que algumas tecnologias são inerentemente políticas é dizer que certas razões de necessidade prática, amplamente aceitas – especialmente a necessidade de manter os sistemas tecnológicos cruciais como entidades que funcionam regularmente – tendem a eclipsar outros tipos de raciocínio moral e político.

Uma tentativa de resgatar a autonomia da política dessa ligação com a necessidade prática envolve a noção de que as condições das associações humanas encontradas no funcionamento interno de um sistema tecnológico podem ser facilmente mantidas separadas da política como um todo. Já de há muito tempo, os americanos se contentam com a crença de que os arranjos de poder e autoridade dentro das corporações industriais, utilidades públicas e instituições congêneres tem pouco ou nada a ver com as instituições públicas, práticas, e idéias em geral.  “A democracia acaba nos portões da fábrica” é tomado como um fato normal da vida e aceito como tendo nada a ver com as práticas da liberdade política. Mas, será que as políticas internas aos sistemas tecnológicos e a política como um todo podem ser tão facilmente separadas?

Um estudo recente sobre líderes de negócios nos Estados Unidos, exemplares contemporâneos da “mão visível da gerência” de Chandler, os revelou particularmente impacientes com escrúpulos democráticos do tipo “um homem, um voto”. Se a democracia não funciona para a firma, que é a instituição mais crítica de toda a sociedade, perguntam os americanos executivos, quão bem pode ela funcionar para o governo da nação – particularmente quando o governo tenta interferir nas realizações da firma? Os autores do estudo verificam que os padrões de autoridade, que funcionam efetivamente na corporação, se tornam para os empresários “o modelo desejável contra o qual devem ser comparadas as relações políticas e econômicas no resto da sociedade.”[xxv] Embora esses achados estejam longe de serem conclusivos, eles apontam para um sentimento crescentemente comum: dilemas tais como a crise de energia requerem não uma redistribuição de riquezas ou uma participação pública mais ampla, mas ao contrário administrações públicas e privadas mais poderosas e mais centralizadas.

Um caso especialmente expressivo no qual os requerimentos operacionais de um sistema técnico podem influenciar a qualidade da vida pública são os debates sobre os riscos da energia nuclear. Na medida que o suprimento de urânio diminui, o plutônio, que é gerado como produto colateral nos reatores, tem sido proposto como combustível alternativo. As conhecidas objeções a reciclagem do plutônio focam no seu inaceitável custo econômico, nos seus  riscos de contaminação ambiental, e nos seus perigos com relação à proliferação de armas nucleares. Mas além dessas objeções há outro conjunto de riscos menos amplamente apreciados que envolvem o sacrifício das liberdades civis. O uso generalizado do plutônio como combustível nuclear aumenta a chance de que esta substância tóxica seja roubada por terroristas, pelo crime organizado, ou por outras pessoas. Isto levanta a possibilidade, de forma alguma trivial, de que medidas extraordinárias tenham de ser adotadas para proteger o plutônio de roubo ou para recuperá-lo caso ele seja roubado. E assim, trabalhadores da indústria nuclear, bem como cidadãos comuns podem se tornar sujeitos a verificações de segurança, vigilância velada, grampos, informantes ou mesmo medidas de emergência sob lei marcial, tudo justificado pela necessidade de salvaguardar o plutônio.

Um estudo de Russell W. Ayres sobre as ramificações legais da reciclagem do plutônio conclui: “Com a passagem do tempo e o aumento da quantidade de plutônio em existência virá pressão para eliminar as verificações tradicionais, as cortes e os lugares legislativos sobre as atividades do executivo e desenvolver uma poderosa autoridade central mais capaz de fazer cumprir estrita salvaguarda. Ele assevera que “uma vez uma quantidade de plutônio tenha sido roubada, a pressão para literalmente virar o país de cabeça para baixo para tê-lo de volta seria esmagadora”. Ayres antecipa e se preocupa com os tipos de pensamento que, conforme tenho argumentado, caracteriza as tecnologias inerentemente políticas. É verdade, ainda, que num mundo onde seres humanos fazem e mantém sistemas artificiais nada é “exigido” num sentido absoluto. No entanto, uma vez que um curso de ação seja adotado, uma vez que artefatos tais como os nucleares sejam construídos e postos em operação, os tipos de raciocínios que justificam a adaptação da vida social aos requerimentos técnicos brotam tão espontaneamente como flores na primavera. Nas palavras de Ayres, “uma vez que comece a reciclagem, e os riscos de roubo de plutônio se tornem reais e não hipotéticos, a pressão para que o governo infrinja os direitos civis parecerá irresistível”[xxvi]. E após um certo tempo, aqueles que não puderem aceitar as duras exigências e imperativos serão considerados sonhadores ou idiotas.

Os dois tipos de interpretação que eu delineei indicam como os artefatos podem ter qualidades políticas. No primeiro caso nós identificamos formas pelas quais aspectos específicos do projeto ou do arranjo de um dispositivo ou sistema podem prover um meio conveniente de estabelecer padrões de poder e autoridade em um dado contexto. Tecnologias desse tipo têm uma faixa de flexibilidade nas dimensões de sua forma material. E precisamente porque elas são flexíveis, suas conseqüências para a sociedade precisam ser entendidas com referência aos atores sociais capazes de influenciar a escolha do projeto e dos arranjos. No segundo caso nós examinamos formas pelas quais as propriedades intratáveis de certos tipos de tecnologia são fortemente, talvez inevitavelmente, ligadas a particulares padrões institucionais de poder e autoridade. Aqui, a escolha inicial sobre adotar ou não adotar alguma coisa é decisiva tendo em vista suas conseqüências. Não há projetos físicos ou arranjos alternativos que possam fazer uma diferença significativa. E além disso, não há possibilidade genuína de intervenção criativa por parte de diferentes sistemas sociais – capitalista ou socialista – que possam alterar a intratabilidade da entidade ou que possam alterar significativamente a qualidade dos seus efeitos políticos.

Saber qual variedade de interpretação é aplicável em um dado caso é freqüentemente a própria questão das disputas, algumas delas apaixonadas, sobre o significado da tecnologia para nossas formas de vida. Eu argumentei aqui na direção de uma posição “ambos/e”, porque me parece que ambos os tipos de entendimento são aplicáveis em circunstâncias diferentes. Na verdade, pode acontecer que dentro de um complexo tecnológico particular – um sistema de comunicação ou de transporte, por exemplo – alguns aspectos possam ser flexíveis em suas possibilidades para a sociedade, enquanto outros aspectos possam ser (para o bem ou para o mal) completamente intratáveis. As duas variedades de interpretação podem se cruzar e interceptar em vários pontos.

Essas são questões onde, evidentemente, as pessoas podem discordar. Assim, alguns proponentes da energia a partir de recursos renováveis agora acreditam que finalmente descobriram um conjunto de tecnologias intrinsecamente democráticas, igualitárias e comunitárias. Na minha melhor estimativa, no entanto, as conseqüências sociais de construir sistemas de  energia renovável certamente dependerão das específicas configurações tanto de hardware como das instituições sociais criadas para nos trazer esta energia. Pode ser que encontremos maneiras de transformar esta  “bolsa de seda” numa “orelha de porco”. Em comparação, os defensores de mais desenvolvimentos da energia nuclear parecem acreditar que estão trabalhando com uma tecnologia bastante flexível cujos adversos efeitos sociais podem ser resolvidos alterando-se os parâmetros de projeto dos reatores e dos sistemas de disposição do lixo atômico. Pelas razões acima indicadas, eu acredito que eles estão completamente equivocados nesta fé. Sim, nós podemos conseguir administrar alguns dos “riscos” à saúde pública e à segurança trazidos pela energia nuclear. Mas, uma vez que a sociedade se adapte aos aspectos mais perigosos e aparentemente indeléveis da energia nuclear, qual será o preço de longo prazo na liberdade humana?

Minha crença de que nós devemos prestar mais atenção aos objetos técnicos em si não significa dizer que nós podemos ignorar os contextos nos quais os objetos estão situados. Um navio no mar pode exigir, como Platão e Engels insistem, um capitão e uma tripulação obediente. Mas um navio fora de serviço, aportado, precisa apenas um zelador. Entender quais tecnologias e quais contextos são importantes para nós, e por que, é um empreendimento que precisa envolver tanto o estudo do específico sistema técnico e sua história, assim como uma completa compreensão dos conceitos e controvérsias da teoria política. Nesses nossos tempos, as pessoas estão freqüentemente dispostas a fazer mudanças drásticas na forma em que vivem para acomodar inovações tecnológicas enquanto ao mesmo tempo resistem a mudanças similares justificadas no terreno político. Seja apenas por esta razão, é importante que tenhamos uma visão mais clara desses assuntos do que tem sido nosso hábito até o momento.

NOTAS


[i] Lewis Mumford, “Authoritarian and Democratic Technics” Technology and Culture 5: 1 – 8, 1964.

[ii] Denis Hayes, Rays of Hope: The Transition to a Post-Petroleum World (New York: W. W. Norton, 1977), 71, 159.

[iii] David Lillienthal, T.V.A.: Democracy on the March (New York: Harper and Brothers, 1944), 72 – 83.

[iv] Daniel J. Boorstin, The Republic of Technology (New York: Harper and Row, 1978), 7.

[v] Langdon Winner, Autonomous Technology: Technics-Out-of-Control as a Theme in Political Thought (Cambridge: MIT Press, 1977)

[vi] O sentido de “tecnologia” que eu emprego neste ensaio não engloba algumas das definições mais abrangentes do conceito encontradas na literatura contemporânea, por exemplo, a noção de “técnica” nos escritos de Jacques Ellul. Meus objetivos aqui são mais limitados. Para uma discussão das dificuldades que ocorrem ao se tentar definir “tecnologia” veja Autonomous Technology, 8 - 12.

[vii] Robert A. Caro, The Power Broker: Robert Moses and the Fall of New York (New York: Random House, 1974), 318, 481, 514, 546, 951-958, 952.

[viii] Robert Ozanne, A Century of Labor-Management Relations at McCormick and International Harvester (Madison: University of Wiscosin Press, 1967), 20.

[ix]  A história da fase inicial da colhedeira de tomates é contada em Wayne D. Rasmussem, “Advances in American Agriculture: The Mechanical Tomato Harvester as a Case Study”, Technology and Culture 9: 531-543, 1968.

[x] Andrew Schmitz and David Seckler, “Mechanized Agriculture and Social Welfare: The Case of the Tomato Harvester”, American Journal of Agricultural Economics 52:569-577, 1970.

[xi] William H. Friedland and Amy Barton, “Tomato Technology”, Society 13:6, September/October 1976. Veja também William H. Friedland, Social Sleep-walkers: Scientific and Technological Research in California Agriculture, University of California, Davis, Department of Applied Behavioral Sciences, Research Monograph No. 13, 1974.

[xii] University of California Clip Sheet 54:36, 1/maio/1979.

[xiii] “Tomato Technology”.

[xiv] Uma história e análise crítica da pesquisa nos colégios agrícolas é dada em James Hightower, Hard Tomatoes, Hard Times (Cambridge: Schenkman, 1978).

[xv] David F. Noble, Forces of Production: A Social History of Machine Tool Automation (New York: Alfred A. Knopf, 1984).

[xvi] Friedrich Engels, “On Authority”, em The Marx-Engels Reader, ed. 2, Robert Tucker (ed.) (New York: W. W. Norton, 1978), 731.

[xvii] Ibid.

[xviii] Ibid., 732, 731.

[xix] Karl Marx, Capital, vol 1, ed. 3, traduzido por Samuel  Moore e Edward Aveling (New York: Modern Library, 1906), 530.

[xx] Jerry Mander, Four Arguments for the Elimination of Television (New York: Willian Morrow, 1978), 44.

[xxi] Veja, por exemplo, Robert Argue, Barbara Emanuel, e Stephen Graham, The Sun Builders: A People Guide to Solar, Wind and Wood Energy in Canada (Toronto: Renewable Energy in Canada, 1978). “Nós pensamos que a decentralização é um componente implícito da energia renovável; isto implica a decentralização de sistemas de energia, comunidades e de poder. Energia renovável não requer enormes fontes geradoras de corredores de transmissão perturbadores. Nossas cidades e vilas, as quais têm sido dependentes de suprimento centralizado de energia, podem ser capazes de alcançar algum grau de autonomia, dessa forma controlando e administrando suas próprias necessidades de energia”. (16)

[xxii] Alfred D. Chandler, Jr., The Visible Hand: The Managerial Revolution in American Business (Cambridge: Belknap, 1977), 244.

[xxiii] Ibid.

[xxiv] Ibid., 500.

[xxv] Leonard Silk e David Vogel, Ethics and Profits: The Crisis of Confidence in American Business (New York: Simon and Schuster, 1976), 191.

[xxvi] Russel W. Ayres, “Policing Plutonium: The Civil Liberties Fallout”, Harvard Civil Rigths - Civil Liberties Law Review 10 (1975): 443, 413-414, 374.