A CONSTRUÇÃO SOCIAL DE UM MERCADO PERFEITO

Reprodução livre, em Português Brasileiro, do texto original de Marie France Garcia para fins de estudo, sem vantagens pecuniárias envolvidas. Todos os direitos preservados.

Free reproduction, in Brazilian Portuguese, of Marie France Garcia’s original for study purposes.
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Marie France Garcia

(resumo/tradução de Fernando Manso)

INTRODUÇÃO

Em 1981 for criado um mercado de “morangos frescos” em Fontaines-en-Sologne – na França que se aproxima muito do modelo do mercado perfeito. Tal modelo, que ocupa lugar de destaque na teoria econômica, é, no entanto, um ideal, algo a ser atingido, e não uma realidade. Embora, o conceito de competição pura seja amplamente utilizado por conta de seu amplo poder explicativo. Neste modelo, o “social” sempre aparece como uma variável residual, um obstáculo à competição perfeita. Os fatores sociais são usados para explicar as diferenças entre os fatos observáveis e os preditos pelo modelo. Neste artigo, Marie France contesta esse uso do “social”. Ela apresenta e explica o mercado como uma construção social (sociotécnica). Ela mostra que os fatores sociais intervieram todo o tempo nas práticas que constituíram este mercado, segundo ela, o mais puro dos mercados econômicos. Ela tenta determinar as condições sociais para a criação e operação deste mercado.

A OPERAÇÃO QUOTIDIANA DO MERCADO

O mercado está fisicamente numa área rural e ocupa um galpão com duas partes. Numa dessas partes ficam os morangos devidamente embalados e rotulados. Na segunda parte tem lugar as vendas na forma de leilão.

Esta segunda parte, por sua vez, está dividida em três partes. A primeira parte é uma cabine, com um computador, um telex e um microfone. É desta cabine que o leiloeiro conduz o leilão. A segunda parte é um quadro eletrônico, que fica na parede externa a cabine, o qual descreve os lotes a venda. O quadro indica o lote sendo leiloado e seu preço, e os lotes e respectivos preços já vendidos com os nomes dos compradores. A terceira parte são duas salas separadas que ficam defronte a cabine. Uma dessas salas é para os compradores e a outra para os vendedores. A sala dos vendedores tem bancos e mesas retangulares, uma balança, um quadro negro com várias mensagens, e várias publicações especializadas sobre preços de morango em diferentes mercados nacionais e internacionais. A sala dos compradores, que é acima da sala dos vendedores, tem uma série de degraus que permitem uma boa visão do quadro eletrônico. Cada comprador tem acesso a um dispositivo eletrônico que pode ser usado para interromper o leilão e comprar o lote em oferta. Tanto compradores como vendedores tem uma visão perfeita da cabine do leiloeiro. Compradores e vendedores não se vêm durante o leilão.

Aproximadamente ao meio dia e meia os produtores chegam ao mercado. Os morangos se apresentam em caixas de 500 gramas dispostas em bandejas que são empilhadas. Cada caixa tem um rótulo que indica o tipo de morango, sua qualidade segundo critérios estabelecidos pelo comitê do Val-de-Loire, e uma indicação da origem. Os produtores dirigem-se então a cabine do leiloeiro e lhe entregam uma folha com uma descrição exata da mercadoria trazida, número de lotes, tipo, peso. O leiloeiro entra com esses dados no computador, que produz então um catálogo, que é distribuído aos compradores, que chegam aproximadamente a uma hora e vão inspecionar a mercadoria. Meia hora após, o leiloeiro toca o sino de abertura dos trabalhos. Vendedores e compradores encaminham-se para suas salas. O leiloeiro anuncia a categoria do morango a ser vendido e informa ao computador os preços máximo e mínimo. A oferta tem início pelo preço máximo e o computador reduz progressivamente o preço até que um comprador se manifeste. Quando  isto ocorre, o produtor do lote em questão indica com um gesto de mão se ele aceita ou não a venda por aquele preço. Caso ele não aceite, o lote é oferecido à venda novamente ao final do leilão. Caso o produtor ainda ache o preço insatisfatório, então o mercado, na pessoa de seu presidente pode recusar que o lote seja oferecido uma terceira vez. Cada lote é vendido dessa forma. As  transações se fazem sem palavras, exceto os pronunciamentos do leiloeiro.

Findo o leilão, compradores e vendedores se reúnem. Os produtores tendem a reclamar quando acham os preços baixos. Usualmente os compradores não respondem às reclamações, embora às vezes justificam-se dizendo que a preços maiores não haveria interessados nos morangos, ou que os morangos são de baixa qualidade. Após o encontro os produtores vão se embora e os compradores vão carregar suas compras em seus caminhões.

MERCADO PERFEITO?

O conceito de mercado perfeito baseia-se em quatro condições.

Atomicidade: cada agente econômico age como se o preço fosse fixo, ou seja nenhum comprador ou vendedor é suficientemente forte para exercer uma influência significativa nos preços.

Homogeneidade: o produto é homogêneo, ou seja tem o mesmo significado para todos envolvidos, e deve ser identificável na ausência do vendedor.

Fluidez: liberdade para compradores e vendedores entrarem ou saírem do mercado. 

Transparência: os agentes econômicos têm perfeito conhecimento da quantidade, qualidade e preço dos produtos em oferta.

Em que medida o mercado de morangos atende a essas condições? O mercado reúne diariamente aproximadamente 35 produtores e 10 compradores. Obviamente, esses números não são suficientemente grandes para garantir a atomicidade. No entanto, Marie France argumenta, a venda em lotes fragmenta a oferta e a demanda, e isso permite aos produtores evitar que o baixo preço num lote afete o preço de toda sua produção. E além disso, a operação do mercado põe os compradores em competição entre si. Dessa forma a venda de um lote representa uma parte relativamente pequena da oferta e da demanda e assim as partes envolvidas na venda de cada lote tem pouco poder para influenciar significativamente os preços gerais. Ou seja, o mercado atende a condição da atomicidade. Na verdade, é como se o mercado tivesse sido construído para atender a essa condição.

Com relação à condição da homogeneidade, morangos frescos tem uma identidade social estabelecida: os critérios de frescura, aparência e qualidade são muito mais exigentes do que os requeridos pela indústria. Além disso, esses critérios são independentes da identidade dos produtores, e constituem uma marca de origem, tipo e qualidade que é reconhecida pelo comitê do Val-de-Loire. Ou seja, o mercado atende a condição de homogeneidade.

Com relação a condição da fluidez, já comentamos que o produtor pode se recusar a vender seus morangos caso considere o preço baixo. Se os morangos não são vendidos, eles podem ser guardados em uma sala fria no mercado na expectativa de um movimento favorável nos preços para o próximo dia. O produtor também pode reprocessá-los e vendê-los para a indústria. Ou pode também simplesmente deixar de colhê-los, se o preço não compensar os custos. Pelo lado da demanda, verifica-se também a mesma liberdade de entrar ou sair do mercado. Os compradores não são obrigados a comprar e a própria decisão de comprar um lote particular é independente da decisão sobre os outros lotes. O mercado atende a condição de fluidez.

Finalmente, a condição da transparência é, obviamente, atendida, pela própria unidade de tempo e lugar das transações. Os morangos expostos, o catálogo e o desenvolvimento do leilão tornam públicas as informações sobre a quantidade, a qualidade e os preços praticados em cada transação.

Na medida em que as quatro condições são atendidas, é possível, então, tratar o mercado de morangos de Fontaines-en-Sologne como uma realização concreta do mercado perfeito. No entanto, um exame mais aprofundado pode revelar algumas falhas no atendimento às condições. Por exemplo, a condição da atomicidade não se sustenta nas entre-safras quando decrescem a produção, e os números de vendedores e compradores, o que possibilita o domínio do mercado pelos compradores mais ativos. A própria possibilidade de produtores se retirarem do mercado quando os preços não compensam os custos pode ter um efeito no nível dos preços.

No entanto, não são essas diferenças entre o modelo do mercado perfeito e a sua realização concreta que a autora pretende explicar sociologicamente. Tais explicações pressupõe uma “tendência natural” a constituição do mercado perfeito e os fatores sociais entram na explicação porque impedem ou atrapalham essa realização. Ao contrário, a autora está interessada nos fatores sociais que estão envolvidos na criação de um mercado com as características do modelo perfeito. Serão analisadas portanto as condições sociais da construção e operação deste mercado: que capitais foram necessários para, por exemplo, a compra do computador e a construção do galpão? quais agentes contribuíram para a criação deste mercado com essas características e regras de operação? Quais as características sócio-econômicas de seus usuários? Qual o caráter da rede comercial constituída pelo mercado? Em que medida o mercado reflete uma continuidade ou uma ruptura com passado?

AS REDES DE COMERCIALIZAÇÃO ANTES DE 1979

Em algumas vilas na Sologne, especialmente Fontaines, a cultura do morango era praticada em um grande número de propriedades, nas quais os métodos de plantio eram primitivos, e o destino dos morangos era a indústria. Os morangos representavam, nesses casos, uma fonte de renda suplementar. No entanto, para alguns poucos produtores, o cultivo de morango representava uma importante fonte de renda, para alguns a mais importante. Essas produções se concentravam nos morangos frescos que eram mais caros, e usavam técnicas modernas: estufas de plástico, colocação de plástico sobre o solo para manter as frutas limpas, mudas selecionadas, etc.

Em 1980, 75% da produção de morangos de mesa era vendida pelos produtores diretamente aos comerciantes. Havia três tipos de comerciantes: os corretores (brokers) que eram pequenos comerciantes locais, que trabalhavam por comissão, e escoavam a produção por Rungis, e que também plantavam, ou mantinham uma quitanda; os expedidores (shippers) que eram comerciantes locais de maior envergadura e que trabalhavam em parte representando os mandatários de Rungis, mas principalmente por sua própria conta; e os mandatários (agents): comerciantes instalados em Rungis. Em todos os casos, o produtor não sabia no momento da venda a que preço seus morangos seriam vendidos. Só o saberia uma ou duas semanas após a venda; o pagamento então, só viria meses mais tarde. Em contrapartida, os comerciantes compradores freqüentemente lhes concediam adiantamentos e compravam não apenas os morangos mas toda a produção.

As cooperativas eram responsáveis pela comercialização dos 25% restantes dos morangos. Embora tenham sido uma rede comercial importante até os anos 60, a partir de então experimentaram acentuado declínio. Suas políticas comerciais não as permitiam competir com os corretores e menos ainda com os expedidores, dos quais eventualmente dependiam para terem acesso a certos mercados, particularmente os de exportação.

Em 1973 foi criado o sindicato dos produtores de morango do Loir-et-Cher por iniciativa de um membro da Câmara de Agricultura, que é o sindicato que agrega a maioria dos grandes produtores. Esta Câmara não oferece  muitos serviços diretos mas serve de ponto de contato entre comerciantes e produtores, o que tornou possível criar uma imagem específica para os morangos da região. Alguns membros e o staff  técnico desta câmara estavam interessados em estimular a produção e elevar a qualidade dos morangos ao nível dos maiores produtores da França. Iniciaram, então, uma campanha e produziram um texto denominado os 13 mandamentos do bom cultivo do morango que visavam reduzir o número de variedades, parar com a mistura de variedades na mesma caixa e uniformizar os métodos de empacotamento. A campanha teve resultados. Em 1976, uma marca de qualidade “morangos da Sologne” foi concedida pelo Sindicato Nacional dos plantadores de morango. Em termos econômicos isso significou um aumento de 5% no preço do morango. Em termos simbólicos, isso significou colocar os morangos, agora rotulados “morangos da Sologne” em pé de igualdade com os morangos de outras regiões produtoras de morango de qualidade.

Esta conquista foi crucial para o estabelecimento do mercado, como um mercado perfeito, porque significou a homogeneidade. Note-se que homogeneidade não é uma característica que exista por si própria. Ao contrário, a homogeneidade foi o resultado de um grande esforço para organizar e estimular a produção. O que nesse caso dependeu de subsídios e de sanções para as produções fora do padrão. Como disse um conselheiro envolvido no processo: “foi uma guerra a obtenção da marca ‘morangos da Sologne’”.

Este foi então o contexto comercial no qual foi criado o mercado eletrônico em Fontaines: transações baseadas em ligações pessoais entre produtores e comerciantes; cooperativas mal adaptadas às redes comerciais, e produtores insatisfeitos com as redes comerciais da região.

AS CARACTERÍSTICAS SOCIAIS DOS PROMOTORES DO MERCADO

A criação do mercado eletrônico parece ter sido o resultado do encontro entre um consultor econômico da Câmara Regional de Agricultura e alguns produtores locais que compartilhavam um interesse em promover este novo método de comprar e vender.

Em 1979 um jovem consultor econômico foi designado para a região, o qual tinha uma formação superior a dos outros membros da Câmara de Agricultura. Ele havia estudado na Escola Superior de Agronomia, era formado em biologia e direito, o que incluía um treinamento em economia, particularmente sobre a teoria neoclássica. Não há dúvidas que este treinamento influenciou suas ações. Por exemplo, ele defendia políticas que reunissem os produtores no objetivo de fazer funcionar os mecanismos competitivos. O consultor tentou inicialmente reorganizar todo o mercado de frutas e vegetais, cuja organização não diferia muito da do morango. Nisto, o consultor não teve sucesso. No entanto, uns poucos plantadores de morango gostaram de suas idéias e mostraram interesse em construir um mercado eletrônico.

Esses plantadores, que eram em número de seis, estavam entre os maiores produtores da região. Eram pessoas atualizadas e estavam entre os primeiros a utilizar técnicas modernas no cultivo de morangos do qual dependia a maior parte de suas rendas. Também cultivavam mudas de morango, milho, fumo ou criavam gado, atividades que exigiam um conhecimento técnico considerável e eram relativamente lucrativas. Cinco dentre eles tinham filhos que poderiam assumir o negócio, mas para tal eram necessárias duas providências: por um lado, ampliar e melhorar a produção, e por outro lado, e principalmente, constituir uma rede comercial mais efetiva. Mas o aspecto que mais os distinguia dos outros produtores era o fato que eles tinham mais e mais freqüentes ligações fora da região através de organizações profissionais, de produtores de sementes, e conexões com outros plantadores de morango de outras regiões da França. Além disso, localmente eles ocupavam posições de liderança, em parte por conta de sua competência profissional.

O papel desempenhado pelos plantadores de mudas de morango (4 plantadores) foi vital no sentido de adquirir conhecimento sobre a produção de morango. Esses plantadores cultivavam mudas selecionadas as quais vendiam pessoalmente em várias regiões, especialmente no Sudoeste que era a região dominante de morango na França. E nessas viagens eles aprenderam muito sobre agricultura. Em particular eles souberam da existência de  plantadores de morango em outras regiões cuja renda era maior que a dos mais bem sucedidos plantadores em Sologne, e cujo solo era menos apropriado ao plantio de morango. Esta descoberta transformou sua perspectiva que era antes limitada pela proximidade aos plantadores de Beaune. Estes plantadores, que eram seus parceiros nas organizações profissionais e políticas, eram seu único ponto de referência: eles cultivavam em solos ricos e adequados ao crescimento de cereais. Por comparação, a Sologne parecia uma região pobre. E realmente, a Sologne, considerada uma das regiões mais pobres da França foi  classificada em 1976 pelo Conselho dos ministros europeus como uma zona desfavorecida, o que lhe dava o status de uma região montanhosa.

No entanto, o contato com outras regiões, especialmente o Sudoeste, feito pelos plantadores de mudas, permitiu aos produtores de morangos reavaliarem seu contexto. Eles ficaram sabendo que tinham solos melhores para a plantação de morango do que os de produtores de outras regiões, além do fato que eram eles que produziam as mudas que eram a base destas outras produções. Ou seja, tornaram-se conscientes que poderiam produzir morangos mais lucrativamente se quisessem.

O TRABALHO DE CRIAÇÃO DO MERCADO ELETRÔNICO

Em 1979 um mercado eletrônico instalou-se em Verg. Seguiu-se um aumento tanto dos preços quanto da qualidade dos morangos de Verg. Aumentou a desvantagem dos morangos da Sologne. Foi nesse contexto que os plantadores líderes e o consultor econômico começaram a tentar convencer os demais produtores e  comerciantes de que deveria ser criado um mercado. O objetivo básico era não o de substituir os comerciantes que já trabalhavam na região, mas criar um novo contexto no qual a competição pudesse operar mais livremente.

Procuraram, então, primeiramente, os comerciantes que reagiram fortemente à criação do novo mercado, inclusive tentando dissuadir seus clientes produtores por meio de contra-informação. No entanto, para certos comerciantes a criação do mercado eletrônico tornaria possível que eles penetrassem em novos mercados. Assim, por exemplo, os expedidores de Saint Romain, onde a produção de morangos era pequena, tiveram interesse no mercado. Outros acharam que o mercado eletrônico lhes possibilitaria assumir controle sobre uma grande parte da produção que, no sistema atual, ia diretamente para os mandatários de Rungis. E dessa forma a noção de competição triunfou: alguns expedidores aceitaram jogar o jogo proposto pelos produtores, e dessa forma desorganizar o sistema no qual os comerciantes trabalhavam.

Para convencer os plantadores o Sindicato dos plantadores de morango organizou viagens a cidades que haviam implantado mercados eletrônicos. Organizaram-se reuniões de conscientização. Quando os plantadores em favor do novo mercado consideraram-se em número suficiente, realizou-se uma reunião geral do sindicato a qual decidiu criar o mercado. A definição das regras e regulamentações do mercado e  as solicitações de apoios governamentais contaram com a ajuda do consultor econômico que também acompanhou o processo da compra do computador e o recrutamento do leiloeiro.

Em maio de 1982 o novo mercado começou a operar numa escola em Fontaines. No ano subsequente, o mercado conseguiu autonomia administrativa e financeira e mudou-se para um galpão especialmente construído, reunindo 21 produtores; a maioria destes eram grandes produtores, cultivavam cerca de 50 hectares. Na verdade, apenas os grandes produtores e que tivessem pelo menos uma caminhonete podiam participar do mercado. E mesmo esses precisavam de um tempo livre o que por sua vez dependia da colaboração de membros da família, que ficavam responsáveis, por exemplo, pela supervisão da colheita do morango enquanto o chefe estava no mercado.

Entre os membros produtores do mercado, três trabalhavam com seus filhos, e doze tinham filhos que tinham um BTA ou equivalente, e poderiam seguir seus pais na agricultura. Dezessete cultivavam outras plantações além dos morangos as quais eles vendiam nas redes comerciais, assim evitando intermediários.

Pelo lado dos compradores, os corretores que não tinham capital suficiente foram excluídos na medida em que o sistema exigia o pagamento no momento da compra. Foram então os expedidores, particularmente os mais fortes economicamente, que entraram no mercado. Eles tinham os fundos necessários para depositar as garantias bancárias requeridas pelo mercado.

E assim foi criado o mercado eletrônico de morangos. Criação esta que deve ser vista como uma inovação social resultante do trabalho de alguns indivíduos interessados, por diferentes razões, em mudar as relações de poder entre produtores e compradores. E não como a simples emergência espontânea de um mecanismo racional e eficiente. Ao contrário, a criação do mercado implicou uma ruptura com as  práticas existentes, implicou investimentos materiais e psicológicos; representou, também um trabalho político de persuasão dos produtores e de confronto com os expedidores. Não foi, portanto, um simples desenvolvimento de relações sociais pré-existentes, não foi o resultado de um mecanismo que se aperfeiçoou. As práticas que constituem o mercado não derivam das práticas anteriores.

A MÃO INVISÍVEL OU CRIAÇÃO CONTÍNUA?

Em 1985 o mercado está em operação. No entanto sua criação abalou velhas amizades entre comerciantes e produtores e provocou brigas familiares quando alguns entravam no mercado enquanto outros continuavam a defender as redes tradicionais. Mas, uma vez em operação, o estabelecimento dos preços resulta da operação da mão invisível como pregava Adam Smith - aquela mão que assegura o desenvolvimento de um equilíbrio entre a oferta e a demanda porque cada um persegue seus interesses? O mercado reflete a operação da competição pura e simples, como assume Samuelson? Marie France dirá que não.

Segundo ela, a operação do mercado deve ser vista como o objeto de vigilância contínua por parte de seus organizadores que têm de brigar contra todas ações dos participantes voltadas para interferir nas transações. Por exemplo, embora a criação do mercado tenha colocado os expedidores em competição entre si, eles vêm tentando se organizar e fazer alianças para recuperar o poder perdido. Isto inclui conversas telefônicas diárias sobre os acontecimentos no mercado, e acordos secretos que vem a tona quando, por exemplo, um lote é colocado à venda pela segunda vez porque o produtor achou o preço baixo. Nessas circunstâncias os compradores não aumentam o preço.

O Conselho administrativo do mercado tem tomado medidas para impedir tais práticas. Então por exemplo, a renovação do contrato com os compradores, que deveria ocorrer automaticamente, vem sendo examinada a cada ano. É uma maneira de aprimorar o que é exigido dos compradores. Além disso, a expulsão é teoricamente possível, e embora  tenha ocorrido uma só vez, a regra significa uma ameaça permanente.

Por outro lado, os produtores também têm de ser cuidadosamente observados. Nem todos seguem as regras. Alguns porque acham que não é de seus interesses. Outros porque não entendem bem o que está envolvido. Assim há alguns que tentam se aproveitar dos dois sistemas: vendem no mercado num dia, e para os expedidores no dia seguinte. Com  isso eles desobedecem a regra que diz que toda a produção deve ser trazida para o mercado, e assim minam as novas relações de poder e reduzem a transparência do mercado.

O encontro de compradores e vendedores que ocorre após o leilão é, usualmente, palco de discussões acaloradas sobre os preços. Essas discussões por vezes prejudicam o clima de cordialidade necessário para a conclusão das transações e para que o jogo seja jogado adequadamente. Cabe, nessas circunstâncias, aos produtores mais familiares com o comércio internacional explicar os detalhes sobre o funcionamento dos preços para acalmar os ânimos. O presidente ou o tesoureiro do mercado sempre comparece a esses encontros para observar, aconselhar e fazer valer as regras no objetivo de manter as boas relações e o desejado espírito de família. Após cada sessão do mercado, há uma reunião informal entre o leiloeiro, o secretário e o presidente para discutir os acontecimentos do dia.

OS EFEITOS SOCIAIS E ECONÔMICOS DO MERCADO

A criação do mercado teve um efeito favorável nos preços do morango. Antes de 1981, os preços eram substancialmente inferiores aos preços nacionais. Após 1981 essa tendência reverteu-se. Em média os preços são tipicamente iguais ou superiores aos preços nacionais, sendo que a diferença pode chegar a 40%. Este aumento ocorreu não apenas no mercado eletrônico, mas também nas redes tradicionais, porque a criação do mercado modificou o campo das redes antigas. Ele criou um padrão, um ponto de referência para os produtores. A exportação de morango cresceu de aproximadamente 10 toneladas em 80 para 90 toneladas em 81.

O aumento no preço não é simplesmente uma função do novo método de compra e venda. É também uma conseqüência do efeito estimulante de justapor diferentes tipos de morango. O mercado revela diferenças em qualidade e quantidade entre as produções que não eram visíveis quando as coletas eram feitas localmente. Além disso, o mercado também era uma fonte de informação sobre as melhores técnicas.

Na medida em que o cultivo de morango se tornou mais lucrativo, aumentou a área cultivada, que triplicou no período 81-85. Também novos produtos foram trazidos para o mercado: aspargo desde 82 e alho poró desde 84.

O mercado modificou tanto o status do morango como de seus produtores. Durante os anos 70 os morangos representavam apenas uma renda suplementar para a maioria dos produtores. Com o mercado eletrônico, os morangos adquiriram uma marca de qualidade e reconhecimento regional. A imprensa local tem publicado uma série de artigos sobre a qualidade dos morangos da Sologne. A produção de morango tornou-se um símbolo de dinamismo, conforme testemunhado pela organização da feira do morango. Em 84 e 85 foram organizadas feiras com jogos, shows e uma exibição sobre o mercado de morangos. A feira reuniu, segundo a imprensa, 15 mil pessoas. A população de Fontaines é 848 habitantes.

Ao lado disso, a criação do mercado reforçou algumas relações existentes e criou outras dentre os produtores. As longas noites gastas na construção do mercado, as viagens, a aceitação coletiva dos riscos envolvidos, terminaram por criar uma identidade mercado eletrônico, alguma coisa que é reforçada a cada sessão. O mercado se tornou uma rede de comunicação numa região onde os produtores estão espalhados, e onde a missa de domingo e a praça do mercado perderam sua função social. O próprio galpão é por vezes utilizado para encontros sociais, por exemplo, quando um filho de um produtor se casa. E dessa maneira, a distinção entre os plantadores que são membros do mercado e os que não são se torna mais óbvia.

Ao lado disso, a criação do mercado fez surgir novas fontes de poder e prestígio. O mercado é administrado por um Conselho que é eleito pelos seus membros. Os líderes do mercado construíram novas ligações com os bancos. Segundo o consultor econômico, essa mudança pode ser simbolizada na relação dos produtores com o banco local que fica num prédio de cinco andares no qual os caixas se situam no andar térreo e a gerência no quinto andar. Antes do mercado os compradores iam apenas ao andar térreo. Após o mercado eles não se constrangem em ir ao quinto andar.

Cresceu tanto o prestígio do mercado eletrônico de Sologne que, em 1982, o encontro anual do morango promovido pelo Sindicato Nacional dos produtores de morango aconteceu em Sologne.

A EVOLUÇÃO DO MERCADO ELETRÔNICO

Desde sua inauguração, o número de membros do mercado cresceu em 65%, o volume vendido de morangos 55% e a área plantada com morangos 66%. Pode assim parecer, à primeira vista, que o mercado tenha recebido uma total adesão dos plantadores da região pela própria expectativa de crescimento da demanda e dos lucros. Mas não é isso o que a autora verificou.

Por exemplo, a maioria dos membros das cooperativas não se juntou ao mercado eletrônico. Uma das razões é que as cooperativas atuavam como corretoras exclusivas para vegetais e uvas e podiam exigir legalmente que seus cooperados escoassem toda sua produção pela cooperativa (incluindo morangos). Há um caso no qual o gerente da cooperativa de Contres, vila próxima a Fontaines era também o prefeito da vila, e portanto sua adesão ao mercado eletrônico teria outros significados que apenas vender mais morangos.

Por outro lado, alguns membros e técnicos da Câmara de Agricultura eram contra o mercado porque eram favoráveis às cooperativas e temiam que o mercado eletrônico fosse uma nova forma mais eficiente de organização econômica o que abalaria seu suporte às cooperativas. Em algumas vilas com baixa adesão ao mercado, a autora constatou a existência de laços familiares entre corretores e plantadores que os fizeram manter a forma tradicional de comercialização. Por exemplo, em Fresnes, havia um comerciante particularmente bem estabelecido que tinha ligações de parentesco com muitos produtores e parece que isso levou os produtores a manterem a forma tradicional de vender.

A autora relata um caso curioso ocorrido em Couremin cujo prefeito era um dos maiores produtores de morango da França, e também um grande produtor de mudas, mas não se juntou ao mercado. A autora levanta a hipótese de uma competição entre esse prefeito e o presidente do mercado eletrônico. Ambos eram grandes produtores de mudas. Ambos eram grandes produtores de morangos de mesa. E ambos almejavam a presidência do Sindicato dos Produtores de mudas. Assim, a não participação do prefeito no mercado tenha sido, talvez, uma estratégia para limitar o sucesso do mercado e o conseqüente prestígio de seu presidente.

UM MERCADO PADRÃO PARA PRODUTORES PADRÕES

Num estudo de caso como esse que parece realizar as condições de competição definidas por Samuelson, é possível explorar essas condições numa perspectiva diferente da dos economistas. Fatores, variáveis ou condições sociais serão consideradas não para explicar por que o mercado  não realiza as condições de perfeição do modelo, mas ao contrário, para explicar como o mercado foi construído, e como é sustentado.

O mercado de Fontaines não se estabeleceu num vácuo social. Ao contrário, desenvolveu-se em oposição a ligações sociais existentes. Sua explicação exige, portanto, a consideração dessas ligações, particularmente entre os produtores, os comerciantes (corretores e expedidores) e as cooperativas. O mercado não decorre dessas ligações sociais existentes. Ao contrário, ele é o resultado de trabalho e investimentos em dois sentidos: investimentos financeiros: no local, no prédio, em pessoal; e investimentos psicológicos: criar uma associação e uma identidade coletiva para os membros do mercado. Este investimento psicológico foi tão importante quanto os demais: o empreendimento exigiu a criação de uma crença coletiva na possibilidade de sucesso - um consenso e confiança mútua de parte de todos os participantes.

Além disso, se as condições perfeitas de competição foram realizadas, ou seja os preços se ajustando às relações de oferta e demanda, isto é porque toda a organização do mercado foi concebida para isso. Sua estrutura espacial, a seqüência diária de atividades, todo o arranjo foi projetado para que os compradores e vendedores pudessem apenas ver as mudanças nos preços no painel eletrônico. Qualquer troca de informação entre os participantes sobre a quantidade e qualidade dos morangos tinha de ocorrer antes de começar o leilão. Durante o leilão é o catálogo que age como ponto de referência concreta durante cada transação. O projeto da sala, a representação das curvas de oferta e demanda (que são criadas independentemente uma da outra) separam os compradores e vendedores que ficam situados de forma que não haja nenhuma comunicação direta entre eles durante o leilão. Ou seja, tudo foi projetado de forma a evitar que “fatores sociais” interferissem na interação livre entre a oferta e a demanda.

Agora, se as práticas diárias do mercado tem essa proximidade com as da teoria econômica é porque esta teoria serviu de modelo de referência para o projeto do mercado. E isso também se aplica às regras sobre quem é admitido e quem não é. E assim o mercado é o resultado de um processo de construção social e econômico. E todo o processo só foi possível porque um certo número de agentes sociais (particularmente produtores cujos filhos pudessem se beneficiar no longo prazo) teve interesse em alterar as relações de poder entre comerciantes e produtores, e puderam fazer isso, auxiliados por um consultor econômico com interesses convergentes.

Ou seja, o funcionamento perfeito do mercado não é devido a mecanismos de mercado, nem a uma mão invisível, função da aplicação de princípios não intervencionistas do laisser faire. Ao contrário, o mercado é o resultado do trabalho de alguns indivíduos com interesse no mercado e da aceitação de outros que acharam vantajoso obedecer as regras do jogo. Assim o mercado é melhor entendido como um campo de luta do que como o produto de leis mecânicas e necessárias inscritas na natureza da realidade social - leis que seriam ocasionalmente distorcidas por “fatores sociais”.