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"A Ciência aprisiona os países latino americanos, em particular o Brasil? Qual a relação do Brasil com a Ciência?
Ivan da Costa Marques é PHD em Computer Science pela Universidade de Berkeley, é professor associado do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da UFRJ; ex Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade Federal do Rio de janeiro - UFRJ. Esteve como "visiting scholar" no Historical Studies Committee da New School for Social Research, Nova York, NY, EUA, concentrando-se em história das ciências e das tecnologias. Foi Coordenador de Política Industrial-Tecnológica da CAPRE e Diretor Técnico da Digibrás (órgãos do Ministério do Planejamento) e foi diretor-presidente da fabricante estatal de computadores COBRA S.A. Formou-se em Engenharia Eletrônica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (1967)." Entrevista gravada em setembro de 2019.
Assista o vídeo "Conhecimentos Brasileiros e Antropofagia", por Ivan da Costa Marques, no YOUTUBE, link abaixo:
TODA CIÊNCIA É HUMANA
Desafios para as/os cientistas brasileiras/os diante do Governo Bolsonaro, antes e depois dele:
políticas de conhecimento no, com e para os Brasis
Ivan da Costa Marques (*)
A pós-graduação no Brasil fortaleceu-se admiravelmente nos últimos 70 anos, se tomarmos como marco inicial a fundação do CNPq em 1951, a ponto de contarmos hoje com uma organização administrativa da pós-graduação brasileira que é singular e invejável fora das metrópoles. É importante destacar este feito antes de qualquer reflexão sobre a pós-graduação. O país tem muito a perder com a demolição desta infraestrutura. E o perigo é real até porque, como bem sabem os economistas, demolir é em geral bem mais barato do que construir ou mesmo conservar. Mas, dito isto, pretendo abordar o tema da pós-graduação a partir de outro ângulo, o dos referenciais de conhecimento que majoritariamente orientam e pautam a pós-graduação no Brasil.
Na maneira hegemônica de entender e analisar os saberes, as ciências naturais povoam a Natureza, enquanto as ciências humanas e sociais povoam a Sociedade. De mesmo modo que as ciências naturais dão formas coletivamente pensáveis e discutíveis aos átomos, às moléculas, às bactérias, aos vírus, aos astros celestes etc., as ciências humanas e sociais dão forma coletivamente pensáveis e discutíveis ao direito, à democracia, à liberdade, à racionalidade, ao trabalho, à inflação etc. Assim como um tomógrafo computadorizado – um instrumento das ciências naturais – é capaz de exibir uma forma coletivamente pensável de um tumor, o IBGE – um instrumento das ciências sociais – é capaz de exibir uma forma coletivamente pensável de uma população: quantos são, como vivem, quais as suas características. Os Estudos de Ciências-Tecnologias-Sociedades das últimas décadas mostraram que as ciências naturais e as ciências humanas estabelecem seus saberes por meio de processos e métodos epistemologicamente equivalentes.[1] Ambas configuram seus fatos, objetos, teorias, sujeitos e instituições estabilizando justaposições de elementos heterogêneos. Em um laboratório de biologia se justapõem cobaias, trituradores, filtros, microscópios, espectrômetros, bancos de dados, tabelas, gráficos, pessoas habilitadas, computadores, salas de reunião etc. Em um laboratório de sociologia justapõem-se meios de transporte e comunicação, mapas, entrevistados, dicionários, bancos de dados, tabelas, gráficos, pessoas habilitadas, computadores, salas de reunião etc.
Além disso, embora as escalas possam variar enormemente, tanto para as ciências naturais quanto para as ciências humanas e sociais, todo conhecimento é “situado”, historicamente incrustrado em seu local, suas relações, seu domínio de validade, isto é, no espaço e no tempo de possibilidades em que se materializa, que nunca pode ser um universo sem referenciais prévios, um vazio pré-cosmológico. No caso das ciências humanas e sociais é sem dúvida mais fácil argumentar, frente às hostes universalistas, que o que vem a ser, por exemplo, “direito”, depende do espaço (cultural) e do tempo (histórico) a que “direito” se refira. Já no caso das ciências naturais as resistências são muitíssimo maiores. No entanto, as famosas experiências de Stuart Freedman e John Clauser, em 1972, e Alain Aspect, em 1982, referentes às bases teóricas da mecânica quântica, mostraram que os comportamentos, portanto as características ou propriedades científicas, do fóton são dependentes do “ambiente”. Mas os físicos costumam supor e trabalhar com este “ambiente” como formado por uma justaposição de elementos naturais dados, constituintes fundamentais da Natureza, já descobertos ou conhecidos ou não, mas sempre já existentes a priori lá no mundo natural. Mais ainda, como se uma experiência científica se desse criando um ambiente fora do espaço (cultural) e do tempo (histórico).[2] Em contraposição, os estudos etnográficos de laboratórios mostraram a resistência a ser vencida para enxergar que os físicos trabalham de fato com sinais produzidos por máquinas projetadas para reagir de forma estilizada a fenômenos ocorrendo sob condições artificiais e altamente controladas. Aqueles constituintes fundamentais da Natureza não fazem parte do mundo antes da montagem do ambiente em que aparecem seus rastros (inscrições). Passadas algumas décadas, continua não sendo fácil argumentar factualmente que sem espectrômetro de massa não existe o que seria um constituinte fundamental da Natureza, as frequências de ressonância de moléculas. (Traweek, 1988) (Latour, 1987/1997)
As experiências acima e outras que as seguiram confirmaram o entendimento teórico da impossibilidade do acesso à materialidade de objetos científicos idealizados em uma forma isolável, não emaranhada, pura. (Shapin, 2010/2013) Tanto para as ciências humanas e sociais quanto para as ciências naturais, esta impossibilidade traduz vínculos propriamente históricos entre um objeto científico, as condições e referenciais que o situam (o “ambiente” da mecânica quântica) e que o tornam possível, isto é, coletivamente pensável e discutível, tanto ele próprio como o conhecimento sobre ele. As escalas em que se situam os conhecimentos científicos variam enormemente e podem ser delimitadas de infinitas maneiras em benefício da ação. Elas variam, por exemplo, desde o interior de um equipamento como um tomógrafo computadorizado para um engenheiro eletrônico, até, por exemplo, toda uma nação, como um coletivo de equipamentos e pessoas envolvido em censos que orientam as políticas públicas ou as políticas de investimento do grande capital privado.
Os Estudos de Ciências-Tecnologia-Sociedade das últimas décadas estabeleceram assim um resultado duplo. Primeiro, que há uma equivalência epistemológica entre as ciências naturais e as ciências humanas e sociais. Segundo, que todo conhecimento é situado. Chamar atenção para o potencial deste duplo resultado para a ação política na construção de conhecimentos científicos é o meu objetivo nesta curta comunicação. Este potencial político não ganhou ainda maior visibilidade nas comunidades científicas brasileiras e, em especial, em nossos programas de pós-graduação. Pela primeira vez na modernidade, uma parte crescente dos próprios pensadores euro-americanos nos dizem que seus saberes científicos são situados nos modos de conhecer e viver euro-americanos, e não universais e neutros. Isto permite que as construções de conhecimento nos, para e com os Brasis não mais precisem seguir os modelos euro-americano do pretenso universalismo, da disfarçada neutralidade e suas exigências.
O potencial político desta virada epistemológica vem da desconstrução da universalidade tal como entendida pelos referenciais da modernidade europeia. A universalidade assim reconfigurada passa a ser, assim como o chamado global, um local específico com o qual os coletivos brasileiros podem se relacionar conforme julguem o que lhes convém, em parte aderindo ou resistindo a ela. Ou seja, rompe-se a autoridade tradicional do conhecimento dito universal, que passa a ser reconhecido como o que ele é, o conhecimento local situado no modo de conhecer e viver euro-americano. Reconhece-se enfim que “o universal é um particular no poder”. O potencial político do duplo resultado dos Estudos de Ciências-Tecnologias-Sociedades pode se manifestar metodologicamente para a construção de conhecimentos a partir da constatação de que é junto ao local, com o local e para o local que se escolhem os problemas e se desenvolvem os saberes científicos para resolvê-los.
Dada a repulsa do Governo Bolsonaro às humanidades e ciências sociais, é importante finalizar alertando para uma consequência grave do enfraquecimento dessas áreas. Este enfraquecimento significa o enfraquecimento da capacidade brasileira de construir elementos cognitivos próprios (locais brasileiros) para tornar coletivamente pensáveis e discutíveis entidades como a racionalidade, a liberdade, o direito, o trabalho, a democracia, a inflação etc, não em suas idealizações universalistas, mas como elas se transformam e se materializam nas populações-espaço-tempo brasileiras. Sem dúvida, o enfraquecimento das humanidades e das ciências sociais acarreta o enfraquecimento da nossa capacidade de melhor podermos avaliar, debater e decidir harmonicamente nossas escolhas e opções em nossas maneiras de viver. Isso acaba por incluir nossa capacidade de definição e escolha de nossos problemas e soluções científicas também nas ciências naturais, agora despidas de roupagens universalistas e neutralistas.
Referências:
DAVIDOVICH, L. Aula Magna no Instituto de Física de São Carlos - Ciência e tecnologia no Brasil: De onde viemos, para onde vamos. São Carlos, SP, 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=C-XWpAFxHS4 >.
LATOUR, B. Ciência em Ação - Como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: UNESP, 1987/1997. 439 ISBN 857139265X.
SHAPIN, S. NUNCA PURA Estudos Históricos da Ciência como se ela fora produzida por pessoas com corpos, situadas no tempo, no espaço, na cultura e na sociedade e que se empenham por credidibilidade e autoridade Belo Horizonte, MG: Fino Traço Editora Ldta., 2010/2013. ISBN 978-85-8054-110-6.
TRAWEEK, S. Beamtimes and lifetimes : the world of high energy physicists. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1988. xv, 187 p. ISBN 0674063473 (alk. paper).
(*) História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE-UFRJ)
Presidente da ESOCITE.BR (Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias) (2011-2017)
Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa da UFRJ (2014)
Vice-presidente da Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC) (2011-2012)
http://lattes.cnpq.br/2796368701159521
[1] Na língua inglesa estes estudos compõem os chamados Science Studies. No Brasil eles circulam sob o rótulo de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias, ou Estudos CTS.
[2] Para uma clara e atraente exposição deste assunto ver (Davidovich, 2018).
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Ivan da Costa Marques
História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE)
Presidente da ESOCITE.BR (Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias) (2011-2017)
Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa da UFRJ (2014)
Vice-presidente da Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC) (2011-2012)
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Descolonizando os Eventos Tecnocientíficos (DET): contralaboratórios e possibilidades de outros fluxos.
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