As ciências e suas práticas do ponto de vista da teoria ator-rede

Bruno Latour é sociólogo, professor do Centre de Sociologie de l'Innovation da École Nationale Supérieure des Mines de Paris e da Universidade da Califórnia, San Diego. Publicou em português Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1994; em co-autoria com Steve Woolgar, A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1997.

Bruno Latour estabelece o mundo científico como terreno privilegiado de suas pesquisas. A investigação de Latour segue um rumo inteiramente novo quanto às práticas dos cientistas. David Hess[1] traça um mapa dos estudos sociológicos de ciência e tecnologia que vai desde as pesquisas de Merton até os trabalhos de Latour. O que está em jogo é que tais estudos sociológicos das ciências deixavam fora de suas análises o conteúdo mesmo da ciência, isto é, seus métodos, teorias e fatos. Segundo Hess, a partir dos trabalhos de Kuhn os estudos sociais em ciência começam a colocar em questão o conteúdo da ciência. A partir da segunda metade da década de 70, um grupo de pesquisadores de língua inglesa começou a promover uma mudança significativa nessa área de estudos. Em 1976 David Bloor lançou as bases para um programa forte nos estudos sociais de ciência. Segundo Latour & Woolgar, a idéia de Bloor era “encorajar os historiadores e os sociólogos que ainda hesitavam em passar de uma história e de uma sociologia dos cientistas para uma história e uma sociologia das ciências”[2]. Conforme a leitura de Latour e Woolgar, Bloor chamava de programa fraco a idéia segundo a qual para ser chamado de historiador ou sociólogo da ciência bastava estabelecer algum tipo de proximidade entre a dimensão cognitiva das ciências e certos fatores sociais. O programa forte, ao contrário, propunha submeter a escrutínio o conteúdo da ciência, de modo que a sociologia da ciência deveria levar em conta, ao mesmo tempo, o contexto social e o conteúdo científico. Para alcançar esse resultado, Bloor propôs o princípio de simetria segundo o qual os mesmos tipos de causa deveriam explicar a verdade ou a falsidade das crenças, isto é, não se poderia mais explicar a verdadeira ciência - a ciência sancionada - referindo-se à natureza e a falsa ciência referindo-se à sociedade[3]. Segundo Latour[4], o princípio de simetria é a-epistemológico na medida em que afirma uma continuidade radical entre o verdadeiro e o falso. Vale ressaltar a importância de tais estudos para o trabalho a ser desenvolvido por Latour. Em suas análises acerca da prática dos cientistas, Latour propõe uma extensão do princípio de simetria de Bloor afirmando um princípio de simetria generalizado segundo o qual não só o erro e o acerto devem ser simetricamente estudados mas, principalmente, a natureza e a sociedade[5]. Por isso, o trabalho de Latour é duas vezes simétrico: “aplica-se ao verdadeiro e ao falso, esforça-se por reelaborar a construção da natureza e da sociedade”[6]. Ao tomar a prática científica como campo privilegiado de suas investigações, Latour mostra como a partir dessa prática são construídas simultaneamente tanto a natureza quanto a sociedade. Para isso, é preciso focar não a ciência feita, pronta e confirmada mas a ciência em ação, a ciência se fazendo nas bancadas dos laboratórios e definindo no mesmo processo o seu conteúdo e o contexto social.

O autor simboliza essa escolha com a figura do deus romano Janus, guardião das entradas e dos portões, na qual vemos duas faces: uma anciã, voltada para o passado, representando a ciência feita, alvo das investigações clássicas acerca da ciência. Outra, a face jovem, voltada para o futuro, representando a ciência em ação. Latour[7] afirma uma mudança de paradigma na direção da prática científica e do mundo da pesquisa porque nestes últimos campos percebemos a incerteza, o risco, as ligações numerosas com o político, a sociedade, enfim as conexões heterogêneas, múltiplas que caracterizam a prática dos cientistas e que ficam fora de cena quando as ciências feitas são o cerne das investigações. É no campo múltiplo das práticas científicas que, segundo Latour, serão construídas a Natureza e a Sociedade.

Sobre a noção de rede

Do ponto de vista topológico, uma rede é caracterizada por suas conexões, seus pontos de convergência e bifurcação. Ela é uma lógica de conexões, e não de superfícies, definidas por seus agenciamentos internos e não por seus limites externos. Assim, uma rede é uma totalidade aberta capaz de crescer em todos os lados e direções, sendo seu único elemento constitutivo o nó. As redes tecnológicas, como as redes ferroviárias, telefônicas e informáticas são, para Latour[8], apenas um caso particular, um exemplo da noção de rede no sentido ontológico e radical que ele lhe confere.

Assim, uma rede se caracteriza por sua heterogeneidade, tem múltiplas entradas, nela a multiplicidade é substantiva, a determinação é um gradiente, espaço e tempo são efeitos das suas tramas, a causalidade é reversível, e ela é caracterizada por subconjuntos restritos marcados por fortes relações de interferência entre eles. Numa palavra, na rede, “a complexidade já não é um obstáculo ao conhecimento, ou, pior, um juízo descritivo, é o melhor dos adjuvantes do saber”[9]. Uma ontologia em rede é o que Serres nos propõe quando fala de uma filosofia das ciências.

Na teoria ator-rede, a noção de rede refere-se a fluxos, circulações, alianças, movimentos em vez de remeter a uma entidade fixa. Uma rede de atores não é redutível a um ator sozinho; nem a uma rede, ela é composta de séries heterogêneas de elementos, animados e inanimados conectados, agenciados. Por um lado, a rede de atores deve ser diferenciada dos tradicionais atores da sociologia, uma categoria que exclui qualquer componente não-humano. Por outro lado, a rede também não pode ser confundida com um tipo de vínculo que liga de modo previsível elementos estáveis e perfeitamente definidos, porque as entidades das quais ela é composta, sejam elas naturais, sejam sociais, podem a qualquer momento redefinir sua identidade e suas mútuas relações, trazendo novos elementos para a rede. Assim, uma rede de atores é simultaneamente um ator[10], cuja atividade consiste em fazer alianças com novos elementos, e uma rede capaz de redefinir e transformar seus componentes. Essa definição de rede implica uma ontologia de geometria variável cujas conseqüências para os estudos em ciências devem ser seguidas a fim de não deixarmos escapar as contribuições da teoria ator-rede tanto em relação aos estudos sociais em ciências quanto em relação aos estudos epistemológicos.

A Psicologia do ponto de vista da teoria ator-rede

Em sua obra, Latour nos permite pensar em bases novas o dilema quanto à cientificidade da psicologia. Pela novidade de suas análises, pode-se considerá-las como solo para discutir a cientificidade da psicologia no que diz respeito aos seus impasses e limites. Ao afirmar uma ontologia múltipla e heterogênea para as ciências, Latour nos permite renovar as discussões acerca da ciência psicológica. É no livro sobre os Modernes Faitiches[11] que ele apresenta a tese segundo a qual a psicologia e a epistemologia são como duas faces da mesma moeda, duas pontas articuladas pelo projeto da modernidade, cuja definição é entendida por Latour como a operação que separa primeiramente sujeito do conhecimento e objeto a ser conhecido e, em segundo lugar, separa a teoria como um domínio de conhecimento puro da prática como um universo de ação no qual estas dicotomias parecem não operar.

É possível afirmar que Latour desdobra a ontologia deleuziana na sua pesquisa acerca da prática dos cientistas e com isto traz um nomadismo para as ciências.. Esse é um dos pontos interessantes do trabalho de Latour: trazer para o campo dos estudos em ciência problemas ontológicos discutidos na filosofia da diferença, representadas tanto pela filosofia de Deleuze quanto pela de Michel Serres. Afirmar a ciência como prática híbrida, nômade e heterogênea, prática que tem por efeito definir ao mesmo tempo a sociedade e a natureza, o sujeito e o objeto. Enfim, as dicotomias que desde o século XVII supomos como dadas de antemão, são elas próprias efeitos de uma ação díspar que Latour chama de prática científica. Se a modernidade é definida pela separação radical entre esses pólos, sujeito de um lado, objeto de outro, então podemos afirmar com Latour, a não-modernidade das práticas científicas. São não-modernas porque são atravessadas por uma disparidade que lhes é intrínseca e, mais do que isto, porque misturam sem cessar o que o pensamento moderno havia separado: os humanos de um lado, as coisas de outro. E são justamente estes pontos que fazem de Latour um autor pertinente e necessário para renovar as discussões em torno da cientificidade da psicologia. Poderíamos pensar numa psicologia nômade? Quais seriam as suas bases, as condições de sua formulação? Se no projeto da modernidade a psicologia e a epistemologia são duas faces da mesma moeda, como poderíamos pensar uma psicologia não-moderna, isto é, uma psicologia definida a partir de uma ontologia híbrida? Somos levados a nos aventurar pelo mundo não-moderno que Latour traz para as ciências e, em particular, somos levados a perguntar sobre o lugar da psicologia nesse mundo.

Pensar um nomadismo na psicologia abre duas vias importantes na investigação psicológica: em primeiro lugar, trata-se de buscar um estilo de ciência para a psicologia que não seja pautado num modelo tomado de empréstimo de outras ciências, em outras palavras, trata-se de um estilo de ciência próprio à psicologia. Em segundo lugar, um nomadismo na ciência permite redefinir o estatuto do erro como campo de estudos da psicologia. Numa ontologia híbrida o erro não é visto como algo a ser corrigido ou como uma imagem revertida do verdadeiro. O erro, neste caso, está articulado a uma hibridação ontológica, a uma errância que faz derivarem as formas do pensamento. Ao definir a ciência como uma prática híbrida, a teoria ator-rede lança luz sobre a possibilidade de uma psicologia nômade, uma psicologia híbrida. E, consequentemente, uma psicologia cujas alianças não são mais aquelas da filosofia cartesiana, da ciência e do bom senso, mas sim aquela que torna positivo esse domínio híbrido. As filosofias da diferença de Michel Serres e Deleuze & Guattari talvez sejam, nesse caso, alianças necessária ao saber psicológico entendido como rede de atores.

Marcia Moraes

Doutora em Psicologia Clínica - PUC/SP

Prof. Adj. Deptº Psicologia

Universidade Federal Fluminense

Email: mmoraes@nitnet.com.br

Para saber mais...

A Psicologia, uma ciência? a questão da cientificidade da psicologia à luz da teoria ator-rede é o título da pesquisa PIBIC que estamos desenvolvendo no Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Se você quiser entrar em contato conosco, envie email para:

Mmoraes@nitnet.com.br  - Marcia Moraes, professora orientadora da pesquisa;

ppbicalho@yahoo.com.br - Pedro Bicalho, psicólogo, mestrando da Ufrj, colaborador da pesquisa;

aclmonteiro@yahoo.com.br Ana Monteiro, psicóloga, mestranda PUC/RJ, colaboradora da pesquisa;

dianals@bridge.com.br - Diana Lindoso, aluna da graduação em psicologia, UFF, bolsista PIBC;

Pepper@bayside.com.br Claudia Moreira, aluna da graduação em psicologia, UFF;

Patcarbone@urbi.com.br - Patrícia Carbone, aluna da graduação em psicologia, UFF.

Notas:


[1] Hess, D. If You’re Thinking of Living in Science and Technology Studies... A Guide for the Perplexed. In: School for American Research, Santa Fé, New Mexico pp.01-21, out.1993.

[2] Latour, B. & Wool Latour, B. & woolgar, S. A Vida de Laboratório: a Produção dos Fatos Científicos. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1997. p.22.

[3] Hess, D. 1993, p. 03.

[4] Latour, B. Jamais Fomos Modernos. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1994,  p.93.

[5] Latour, B. op.cit. p.95; Latour, B. & Woolgar, S. 1997, p. 24.

[6] Latour, B. & Woolgar, S. op.cit., p.24.

[7] Latour,BLe Métier de Chercheur Regard d’un Anthropologue.Paris,INRA,1995.p.12.

[8] Crawford, H<An Interview with B. Latour. The John Hopkins University Press, pp. 247-268, 1993. p.09.

[9] Serres, M. A comunicação. Portugal, Rés Editora, s/d p.15.

[10] Latour utiliza a noção de ator - algumas vezes ele fala em actantes - no sentido semiótico: um ator ou actante se define como qualquer pessoa, instituição ou coisa que tenha agência, isto é, produz efeitos no mundo e sobre ele. É importante diferenciar a noção de ator no sentido semiótico que lhe atribui Latour, da noção de ator no sentido sociológico tradicional. Porque, nesse último caso, a noção de ator se confunde com a noção de fonte de ação atribuída a um humano. Na acepção de Latour, um actante é caracterizado pela heterogeneidade de sua composição, ele é antes, uma dupla articulação entre humanos e não-humanos e sua construção se faz em rede.

[11] Cf. Latour, B. Petite Réflexion sur le Culte Moderne des Dieux Faitiches. Paris, Les Empêcheurs de Penser en Rond, 1996, pp.