Sobre a noção de rede e a singularidade das ciências

Marcia Moraes

Publicado em: Moraes, Márcia Oliveira.  Sobre a noção de rede e a singularidade das ciências Revista Documenta. Ano VIII, nº 12/13, pp. 57-70, 2001-2002.

Resumo: Este artigo tem o objetivo  de analisar as relações entre as discussões acerca da singularidade das ciências propostas por Isabelle Stengers e a noção de rede tal como proposta nos trabalhos de Bruno Latour e Michel Callon. Colocar as ciências sob o signo do acontecimento, tese de Stengers, implica uma redefinição das noções de fato científico, verdade e razão. Trata-se de considerar as ciências como um processo de fabricação de fatos, nos quais estão articulados atores heterogêneos e díspares. A noção de rede é o fio condutor que permite entender o sentido e o alcance da tese a respeito da singularidade da ciência. Por fim, são analisadas as conseqüências desse enfoque para o debate em torno da cientificidade da psicologia.

Palavras-chave:  singularidade da ciência, rede, psicologia.

Sobre a noção de rede e a singularidade das ciências

Analisar as ciências sob o signo dos acontecimentos, tese deleuziana de Isabelle Stengers (1993), é aceitar - contra qualquer critério a-histórico e a-político - a possibilidade de um paralelo com a maneira pela qual Deleuze & Guattari caracterizam a filosofia, isto é, como um processo contingente. A tese de Stengers se baseia, numa grande medida, nos trabalhos de Bruno Latour e, talvez por este motivo, ela lhe dedique o livro L’Invention des Sciences Modernes.

A invenção das ciências modernas decorre, de acordo com Stengers (ibid), da invenção de um dispositivo, cujo autor é Galileu e cuja característica é a produção de um “fato de arte” ou um artefato. Esse dispositivo se caracteriza principalmente por permitir a seu autor se retirar da cena experimental, isto é, no caso de Galileu, o movimento descrito pelo plano inclinado prescinde da presença do seu autor. Assim, a lei do movimento independe de uma observação, ele depende de uma ordem de fato, criada a partir de um dispositivo de laboratório. Mas, Stengers (ibid) salienta, esse dispositivo tem uma peculiaridade: ele produz uma ficção, um artefato só passível de ser interpretado de um modo, isto é, o dispositivo permite afirmar que a única descrição fiel do movimento é aquela que lhe confere Galileu. Produzida por um dispositivo experimental, a verdade apresenta-se como uma ficção, uma produção peculiar que se define negativamente por não poder ser enunciada senão de acordo com os parâmetros estabelecidos por aquele dispositivo experimental. A verdade de um enunciado experimental faz calar o cético, faz calar qualquer adversário. “O mundo fictício proposto por Galileu não é somente o mundo que Galileu sabe como interrogar, é um mundo que ninguém pode interrogar diferentemente dele” (ibid, p. 100). O dispositivo experimental é, nesse sentido, um operador que incide simultaneamente sobre as coisas e sobre os humanos uma vez que ele propõe, numa mesma operação, uma encenação das coisas e uma desqualificação daqueles que, dentre os homens, não aceitam o desafio dessa encenação. Esse enfoque de Stengers se coaduna com o de Latour (1994), uma vez que o plano inclinado ocupa em seu trabalho um lugar semelhante àquele que Latour (ibid) confere à bomba de ar, inventada por Boyle. Tanto num caso quanto no outro importa salientar a função mediadora do dispositivo experimental; aqui vale lembrar que o termo mediação implica uma operação de transformação, de tradução. Assim, os dois dispositivos em questão redistribuem e redefinem sujeito e objeto, sociedade e natureza[1] e funcionam, segundo Stengers, como “dispositivos tutelares da prática teórico-experimental” (Stengers, op. cit., p. 116). Como mediadores, tais dispositivos operam deslocamentos, desvios, traduções, operam, enfim, transformações nos atores que, de um modo ou de outro, estão implicados na prática experimental. Atores certamente tão heterogêneos e díspares quanto uma bomba de ar e uma guerra civil iminente. Quais são as conseqüências de considerar desse modo a invenção das ciências? O que significa, do ponto de vista de uma reflexão sobre as ciências, tratar os dispositivos experimentais como mediadores?

De saída a concepção citada acima tem como conseqüência questionar a idéia de que um cientista trabalha isolado em seu laboratório. Não se trata simplesmente de afirmar a existência de uma “comunidade científica”. É mais do que isto. Dizer que um cientista não está isolado significa dizer que, em seu laboratório, ele só faz existir um fato na medida em que mobiliza aliados. A ciência é, nesse sentido, um processo de bricolage e negociação. Assim, para fazer existir um fato, é preciso estender, ampliar a rede[2] de aliados que o sustentam. O acontecimento experimental levanta o problema político da co-existência da ciência com outros atores que precisam ser mobilizados, aliados; em outras palavras, o acontecimento experimental abre o problema das suas conseqüências, dos seus efeitos sobre atores heterogêneos. Esse modo de tratar a ciência requer  um questionamento de qualquer perspectiva filosófica ou epistemológica que enquadre a ciência, através de suas distinções e fronteiras, em  relação ao contexto social, cultural ou político. Stengers, do mesmo modo que Latour, afirma a estreita relação entre ciência e política, ciência e redefinição dos laços sociais.

A principal característica da política inventada pelas ciências é o vínculo por ela engendrado entre a praxis - a sabedoria prática - e a poiesis - o saber-fazer. Segundo Stengers (ibid), a distinção aristotélica entre praxis e poiesis diz respeito à distinção entre a ação humana, aberta e ilimitada, por um lado, e o trabalho de fabricação de um produto, por outro. O laboratório é o lugar de cruzamento da poiesis com  a praxis. Poiesis, porque ele é o lugar de fabricação de um fato por meio de um dispositivo experimental. Praxis porque o fato não é um fim em si mesmo; ao contrário, ele abre um domínio de ação díspar, ele se endereça a outros atores e é disso que depende a sua existência.

Com essa linha de argumentação, Stengers afirma que “a questão do poder não é um parasita da prática das ciências”(ibid, p.119). Stengers entende a questão do poder como uma das conseqüências do acontecimento experimental. Poder é sinônimo de poder local, poder de interessar e mobilizar aliados. Numa palavra, poder é sinônimo de redes de poder. O acontecimento experimental não garante a um fato ser estabelecido como científico. Não há a priori nenhuma garantia acerca das conseqüências do acontecimento experimental; como uma contingência, ele não se justifica por qualquer ordem transcendente, mas sim pelas ordens locais, pelas alianças performativas produzidas a partir de seu advento. O acontecimento experimental se situa num ponto de cruzamento entre fato e história, isto porque um fato não possui uma identidade que o defina em si, isoladamente, ele depende de uma rede composta de atores múltiplos. O acontecimento experimental abre um campo de negociação a partir do qual serão definidos a identidade do fato, o brilho do cientista, a importância de um laboratório, enfim, desse campo de negociação emergem como pontos locais, a verdade do fato, a racionalidade da atividade científica, a natureza e a sociedade.

Os laboratórios e suas redes

Stengers (ibid) faz uma leitura interessante de um trabalho clássico de Bruno Latour, o seu livro Science in Action. Ela mostra que, nesse texto, Latour trabalha de maneira brilhante com a concepção de ciência como estratégia de mobilização do mundo por meio de seus produtos, os fatos científicos. Nesse livro, Latour lida com um exemplo: a descrição de uma semana na vida de um cientista, diretor de um laboratório onde foi identificado um hormônio secretado pelo cérebro, a pandorina. Esse hormônio é um artefato. A pandorina isolada e purificada não é mais do que uma molécula produzida pelo cérebro. No entanto, dependendo da estratégia do cientista para mobilizar aliados, ela pode vir a ser um ponto de partida para uma revolução, pode valer um prêmio Nobel, pode servir para colocar fim em uma controvérsia. O papel do cientista é produzir interesse, intrigar, negociar. Um campo de negociação é aberto pelo advento da pandorina e a identidade desse artefato vai ser um efeito dos resultados de tal negociação. Da universidade à industria, os deslocamentos são necessários para definir a pandorina como um fato científico. As operações de tradução e mediação efetuam as transformações necessárias para que a pandorina possa interessar a uma indústria, a uma universidade, a outros cientistas, aos alunos de pós-graduação, aos jornalistas. O cientista deve fazer existir o fato nos mais díspares registros. Isso não significa que a pandorina dependa, para existir, única e exclusivamente da estratégia do cientista. É certo que no laboratório ela passa por rigorosas condições de prova. Mas, salienta Stengers,

nada confere à molécula ‘em si’, independentemente do cientista, o poder de suscitar essas provas das quais ela depende, de impor aos pesquisadores, aos industriais, aos jornais científicos, um interesse sem o qual ela permaneceria uma simples molécula, nua, com papel e possibilidades indeterminados. (...) O cientista é constrangido a se interessar pelo mundo, a transformá-lo, para que este mundo faça existir sua molécula. (Stengers,1993, p. 138).

Enquanto as leituras epistemológicas das ciências procuram, de um modo ou de outro, estabelecer uma relação entre razão e verdade, a perspectiva aberta pela teoria ator-rede, endossada por Stengers, relaciona política e razão, ou seja, faz valer à noção de rede uma política da razão. O interesse é parte constitutiva dessa política: interessar, convencer, negociar, procurar aliados são as condições de possibilidade para um fato ser científico. Não há razão sem negociação, sem essa política inventada pela ciência. Daí decorre a importância de investigar uma ciência em ação, isto é, a ciência praticada pelos cientistas nas bancadas dos laboratórios. Qual a importância de uma etnografia de laboratório, tal como aquela que Latour e Woolgar (1997) propõem a respeito do Instituto Salk?

Na perspectiva da teoria ator-rede, um laboratório está longe de ser um lugar isolado, fechado e separado do mundo. Ele é o locus onde são constantemente redistribuídas a natureza e a sociedade. Latour (1992) salienta que não há de um lado, um contexto social e de outro, um laboratório. A questão fundamental diz respeito ao papel desestabilizador de um laboratório: a clonagem de uma ovelha mobiliza a Igreja, redefine as ciências biológicas, levanta questões éticas, políticas. Numa análise do trabalho de Pasteur no século XIX, quando o grande cientista inventou uma vacina contra o antraz, uma doença que atacava o gado e infernizava a vida dos criadores de animais, Latour afirma que: “em seu próprio trabalho científico, nas profundezas de seu laboratório, Pasteur modifica a sociedade de seu tempo e o faz de maneira direta - e não indireta - por meio do deslocamento de alguns de seus atores mais importantes”(ibid, p.156). Ao inventar uma vacina contra o antraz, Pasteur se tornou o único porta-voz autorizado a falar em nome do micróbio, agente causador da doença. Com isso, ele deslocou para o seu laboratório interesses diversos: dos criadores de animais, dos veterinários e dos higienistas, por exemplo. Há uma série de deslocamentos, de operações de tradução nas relações entre o laboratório e as propriedades agrícolas implicadas no problema do antraz. E Latour salienta: “nessa sucessão de deslocamentos, ninguém pode dizer onde fica o laboratório e onde fica a sociedade” (ibid, p. 154). A dicotomia entre interior e exterior deixa de ter pertinência quando o que está em jogo é a construção de uma rede capaz de fazer  existir a vacina do antraz, a esperteza de Pasteur, os consumidores da vacina. Toda uma série de traduções e desvios estão implicados na mobilização desses atores. As análises da ciência como o exercício de uma razão, ou como a instituição de uma norma, deixa escapar uma  estreita relação entre ciência e sociedade, ciência e política e é justamente sobre esse ponto que incide a teoria ator-rede. Em outras palavras, estudar a ciência em ação significa estudar a ciência como um processo de fabricação do mundo - social e natural. Ação é aqui o mesmo que fabricação, invenção; não se trata da ação de um indivíduo, mas de uma prática coletiva, uma prática de mediação que articula humanos e não-humanos. A noção de rede desloca o cerne dos estudos em ciência: da representação para a fabricação. Disso decorre a importância das etnografias de laboratório. Estudar a ciência em ação é questionar a distinção entre o nível macrossocial e as ciências de laboratório porque os resultados do trabalho experimental se deslocam numa rede de ação cuja extensão alcança  desde os laboratórios até os mais diversos atores. Por esse motivo, Callon (1989) propõe tratar o laboratório como uma rede que articula humanos - os cientistas, os técnicos - a não humanos - os equipamentos, instrumentos, revistas, dados , etc.

“A ciência é a política praticada por outros meios”, diz Latour (op. cit., p. 168). É política na medida em que ela é fonte de poder, isto é, ela convence, interessa, mobiliza, desloca os mais diversos atores. No exemplo de Pasteur, Latour mostra como, por meio dos mais imprevisíveis recursos, o cientista deslocou atores importantes na sociedade do século XIX. Levando esse argumento às últimas conseqüências, Latour considera que nas sociedades contemporâneas “a maior parte do poder realmente novo vem das ciências e não do processo político clássico” (ibid). Por isso, os sociólogos da ciência, quando investigam os macroníveis, isto é, os contextos sociais, políticos, econômicos, excluem de cena exatamente o que é forte nas ciências e na tecnologia: as políticas por  elas inventadas, a sociedade por  elas definidas e a natureza por elas criadas. Para estudar o modo como as ciências redefinem os laços sociais, para estudar a sociedade e a natureza que elas fabricam, é preciso, conforme indica Latour (ibid), estudar o conteúdo das ciências, estudar as ciências em ação na bancada dos laboratórios.

Fazer da ciência um acontecimento contingente implica levantar o problema da sua singularidade. Stengers (op. cit.)afirma que a singularidade das ciências consiste numa invenção peculiar - o dispositivo experimental - que produz ficções convincentes, ficções que têm, conforme dito anteriormente, o poder de fazer calar qualquer adversário. Para usar os termos de Latour (1994), a singularidade das ciências diz respeito ao seu poder de produzir assimetrias, produzir nós em uma rede de atores, de produzir pontos de passagem obrigatória. A singularidade das ciências faz valer o caráter coletivo, político da prática científica porque, para produzir uma assimetria na rede de atores, é necessário buscar aliados. Foi o que fez Pasteur com a vacina contra o antraz e é o que faz qualquer cientista.

A singularidade das ciências ou as ciências como potências de inovação

A noção de singularidade das ciências, proposta por Stengers, encontra ressonâncias na a filosofia deleuziana e é um dos pontos-chave para traçar o paralelo entre filosofia e ciência. Na filosofia da diferença, o conceito de singularidade remete à alegação de uma realidade pré-individual para a gênese das formas individuadas. Nesse medida, a noção de indivíduo é segunda e relativa em relação ao pré-individual. Buydens (1990) salienta que, por esse viés, Deleuze & Guattari ultrapassam o substancialismo atomista porque neste domínio os átomos são unidades fechadas e delimitadas de tal maneira, que qualquer processo genético parte de uma realidade já determinada. Em outras palavras, está em jogo, nesse caso, um processo de gênese que consiste em passar de um indivíduo a outro e ao contrário disso, o desafio da filosofia de Deleuze & Guattari é tratar de um processo genético cujo solo é composto por uma realidade pré-individual. As singularidades são intensivas, nômades e móveis, não havendo  nenhuma relação de afinidade que, de antemão, estabeleça os critérios de seus agenciamentos. Dessas características decorrem o aspecto sempre contingente das multiplicidades: “sua forma não é de modo nenhum necessária, mas resulta do agenciamento sempre espontâneo e modificável das singularidades”(Buydens, ibid, p.23). Falar de uma singularidade das ciências, como faz Stengers, significa afirmar o caráter contingencial das práticas científicas e, mais do que isto, significa  considerá-las a partir de distribuições de errância, instáveis por natureza.

A idéia de uma singularidade das ciências não se confunde com as discussões epistemológicas em torno de sua autonomia. A epistemologia de língua francesa se baseia num princípio geral de estabelecer as fronteiras entre ciência e não-ciência. Stengers salienta que a epistemologia tem uma preocupação démarcationniste[3] e por isso não pode prescindir das noções de corte e ruptura. Como conseqüência disso, a ciência é vista como um domínio autônomo, entendendo o termo autonomia como a constituição de uma realidade distinta do contexto social, político. Na perspectiva de sua singularidade, as ciências são vistas como processos contingentes, políticos, instáveis por natureza e marcadas por uma deriva intrínseca; já na leitura epistemológica, as ciências são vistas como uma instituição de normas, como um domínio separado do contexto social, político, enfim, como um domínio autônomo em relação às demais práticas humanas. Uma conseqüência importante desse enfoque epistemológico é ele impor uma desqualificação daquilo que fica fora do domínio científico. Desse modo, há um resíduo - o contexto social, a política, a ação humana, no sentido de uma praxis - que é excluído do domínio da ciência e que, além disso, é destituído de qualquer poder de colocar em risco os enunciados científicos. O não-científico é da ordem da opinião e, como tal, é destituído do poder de interrogar a ciência quanto aos seus objetos e quanto à sua démarche. Em última instância, a discussão em torno da autonomia das ciências visa a garantir-lhes um espaço sem risco, sem instabilidades. Enquanto a noção de singularidade faz desse risco uma pedra de toque, a noção de autonomia tende a capturar numa norma qualquer contingência. Nesse caso, os enunciados científicos se tornam categorias de julgamento isoladas da rede de sua prática. Disso resulta que

o fenômeno não é mais apenas um testemunho confiável, mas torna-se objeto no sentido forte, quer dizer, que as categorias experimentais perdem sua referência à cena experimental enquanto que prática, para tornar-se categorias de julgamento, válidos de direito, independentemente do laboratório onde elas poderiam ser colocadas à prova. (Stengers, 1993, p. 122).

Um tipo assim de leitura das ciências acaba por fazer valer as categorias do verdadeiro para além dos limites da prática que as engendram. A ciência deixa então de ser uma potência de inovação para se tornar um modelo a ser reproduzido. Stengers afirma que os termos objetividade, neutralidade, racionalidade são de fato estranhos à prática da ciência (Chevalier, 1997, p.3). Isso não significa dizer que os enunciados de uma ciência, como a física, por exemplo, devem ser reduzidos a uma simples construção social. Antes, significa dizer que a existência de um fato experimental, o neutrino, para tomar um exemplo em física (ibid, p.5), responde aos critérios dos físicos, “critérios que, certamente, são altamente exigentes mas que não convêm forçosamente a todos os modos de existência por  nós encontrados” (ibid). Considerá-los como modelos é o mesmo que propor que todas as demais práticas científicas deveriam se organizar de acordo com o estilo da física, de acordo com as suas categorias práticas, com os seus riscos. A ontologia em rede, ao contrário, permite afirmar, conforme indica Stengers, que “existir se diz em múltiplos sentidos” (ibid), logo, considerar as exigências de uma prática científica singular como um padrão a seguir é ignorar “a multiplicidade dos problemas que os humanos são capazes de levantar” (ibid). Nessa perspectiva, não há como supor as diversas ciências se dirigindo a objetivos comparáveis, o que resulta na impossibilidade de afirmar uma relação de hierarquia entre as ciências. As questões de uma ciência só valem para aqueles que se engajam em sua prática ou, dito de outra forma , para aqueles atores que são mobilizados pela sua rede de ação. Ao invés de falar de uma hierarquia das ciências, ao invés de considerar uma démarche científica como modelo e paradigma para qualquer outra ciência, cabe afirmar a singularidade de cada uma, as exigências e os riscos singulares de cada prática científica.

Assim, parece-nos que entender as ciências por sua singularidade, como propõe Isabelle Stengers, implica afirmar a noção de rede, isto é, implica afirmar que as ciências são práticas que produzem efeitos na medida em que mobilizam aliados. Dito de outro modo, a noção de rede tal como definida por Latour (1994), isto é, como ontologia de geometria variável, pode ser considerada como ponto de partida a partir do qual se pode entender as ciências como singularidades. Tal análise engendra conseqüências estéticas, políticas e éticas. Estética no sentido de que uma prática científica faz existir seres até então inéditos e, mais do que isto, a prática científica produz, dentre os homens, aqueles que se engatam na sua prática. Desse modo, o efeito estético da singularidade das ciências diz respeito a um processo de dupla produção: de um lado, os artefatos e de outro, os cientistas. Nas palavras de Stengers, “estética designa de início uma produção de existência que releva da potência de sentir: potência de ser afetado pelo mundo sobre um modo que não é aquele de interação sofrida, mas de uma dupla criação de sentido, de si e do mundo” (op. cit., p. 167).

Efeitos políticos: a ciência é considerada a partir de relações de interesse, de alianças performativas. O sentido de política remete, conforme dito anteriormente, às redes locais. Um fato científico é aberto, isto é, comporta um grau de indeterminação a  ser preenchido de acordo com a rede da qual ele vai fazer parte.

Efeitos éticos: está em jogo a construção de verdades locais, imanentes às suas redes de ação. A verdade científica é um efeito de uma ação díspar e paradoxal: a prática científica. Nesse sentido, ela é a posteriori, local, temporária, instável. Não há nenhuma ordem transcendente que, como um lei moral, garanta de antemão os critérios sobre a veracidade de um enunciado científico.

Assim, do ponto de vista de sua singularidade, uma ciência é avaliada a partir dos riscos de suas práticas, os seus produtos são artefatos ou ficções, as suas práticas são sempre coletivas e delas resultam a invenção do sujeito e do objeto. Diferentemente disso, do ponto de vista de sua autonomia, as ciências são avaliadas por seus princípios que, grosso modo, podem ser descritos como palavras de ordem, os resultados de sua práticas funcionam como categorias de julgamento, sujeito e objeto são tomados como pólos constituídos, dados.

A psicologia e a questão da singularidade da ciência

A questão da singularidade da ciência toca em particular a psicologia. Porque, conforme indica Stengers (Chevalier, op. cit), a psicologia experimental é um ótimo exemplo dessas disciplinas que, para existir, têm necessidade da idéia de que um conhecimento objetivo se obtém suprimindo nos objetos aos quais elas se dirigem tudo aquilo que poderia colocá-los em risco. O problema do erro é um desses casos: importa encontrar leis gerais que permitam justificar porque o homem erra, seja na cognição, seja em suas práticas. A psicologia, desde o século passado, está às voltas com o problema de sua justificativa, de sua autonomia em relação, por um lado, às ciências naturais, por outro lado, em relação à filosofia. A polêmica em torno de sua cientificidade, de sua dispersão, dos seus métodos e objetos diz respeito a um certo modo de entender o que constitui uma prática científica.

É possível dizer que os debates em torno da cientificidade da psicologia giram em torno de um estilo epistemológico de analisar as ciências. Um estilo caracterizado por: tomar como referência dada a dicotomia entre sujeito e objeto; situar o problema do conhecimento no âmbito da representação, isto é, das relações entre sujeito e objeto; por estabelecer princípios de demarcação entre ciência e não ciência, fazendo com que o não científico seja destituído do poder de questionar e interrogar os enunciados de uma ciência.

A insistência do problema do erro no campo da psicologia assinala  a insistência de seu campo problemático que, longe de ser corrigido ou justificado, deve ser tomado como a sua potência de inovação. Uma das condições de formulação de uma psicologia afinada com  o nomadismo de seu campo problemático envolve a  sua afirmação como uma ciência em rede, uma ciência híbrida. Nesse sentido, estamos diante de uma ciência que se define por suas relações com o político, que se singulariza como prática coletiva e que mantém relações de devir - e não de autonomia - com as demais práticas: antropologia, informática, ciências naturais. Não se trata de considerar quaisquer dessas práticas como modelos a serem seguidos, trata-se antes de “dar aos diferentes tipos de prática uma existência legítima, fora hierarquia” (ibid, p.07) - uma preocupação política. É certo que esse estilo de ciência acompanha a ontologia em rede do real. Assim, no caso da psicologia, não importa estudar a cognição como um atributo de um sujeito, ou estudar uma prática humana referida a um agente individual. A ontologia em rede engendra um deslocamento da noção de sujeito para subjetividade e da noção de objeto para coisa no sentido de sua variação. No que toca à cognição, a teoria ator-rede opera um deslocamento interessante: trata-se de entender a cognição como uma dupla articulação entre humanos e não-humanos. Na perspectiva das redes, a cognição é distribuída a atores díspares, sejam eles humanos, sejam não-humanos. Uma cognição delegada, distribuída e não referida a um agente cognitivo (Woolgar, 1996). Entender a psicologia a partir da noção de rede comporta uma dupla exigência: uma redefinição do sentido de uma ciência psicológica e uma redefinição do seu campo de estudos. Ação e cognição não são no contexto das redes devidas a um agente individual, elas remetem antes a um campo de multiplicidades díspares e heterogêneas. Elas são práticas coletivas, práticas de hibridação na qual estão sempre articulados humanos e não-humanos.



Notas

[1] Para entender as distinções entre os dois dispositivos, ver Stengers, 1993, p. 116.

[2] A noção de rede remete a fluxos, circulações, alianças, movimentos. A noção de rede de atores não é redutível a um ator sozinho nem a uma rede. Ela é composta de séries heterogêneas de elementos, animados e inanimados conectados, agenciados. Por um lado, a rede de atores deve ser diferenciada dos tradicionais atores da sociologia, uma categoria que exclui qualquer componente não-humano. Por outro lado, a rede também não pode ser confundida com um tipo de vínculo que liga de modo previsível elementos estáveis e perfeitamente definidos, porque as entidades da quais ela é composta, sejam elas naturais, sejam sociais, podem a qualquer momento redefinir sua identidade e suas mútuas relações, trazendo novos elementos para a rede. Neste sentido, uma rede de atores é simultaneamente um ator cuja atividade consiste em fazer alianças com novos elementos, e uma rede que é capaz de redefinir e transformar seus componentes. Cf. Callon, 1986, pp.83-103.

[3] Cf. Stengers 1993, p. 36. Ao tratar da epistemologia, a autora utiliza a expressão “tradition démarcationniste”. Optei por utilizar o termo no original por não encontrar em português um termo equivalente.

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