Por uma Estética da Cognição:
A Propósito da Cognição em Latour e Stengers

Marcia Moraes

Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, Mestre em Psicologia Cognitiva pela FGV/RJ, doutora em Psicologia Clínica pela PUC/SP.

Publicado em: MORAES, Marcia Oliveira. Por uma Estética da Cognição: A Propósito da Cognição em Latour e   Stengers. Revista Informare, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 49-56, 1998.

Resumo: Este artigo trata da noção de cognição tal como ela é afirmada nos trabalhos de Latour e Stengers. Estes autores afirmam uma estética da cognição no sentido de uma cognição que se faz em rede ou rizoma, uma cognição cujas regras são imanentes, intrínsecas e por isso mesmo mutáveis. Analisando a ciência como uma atividade rizomática os autores citados afirmam uma ontologia também rizomática, cujas conseqüências são levantadas tanto para a Psicologia quanto para a Psicanálise.

Palavras-chave: rede, rizoma, cognição, estética, epistemologia, psicologia e psicanálise.

Este trabalho parte de uma inquietação provocada por uma prática que eu não hesitaria em chamar de prática psi: a atividade docente. Como professora de Psicologia, me interrogo acerca do que é a Psicologia, quais são suas questões, seu campo de atuação, seus efeitos, sua função, etc. Em última instância me interessa saber daquilo que um professor de Psicologia fala, ou dito de outro modo, me interessa pensar o que pode significar o termo Psicologia. No plano do saber psicológico recorto o domínio que trata das investigações a respeito da cognição buscando conhecer o modo de produção do conhecimento. Terreno problemático, transdisciplinar e conectado com diversas práticas ditas psi. Desde já saliento que a transdisciplinaridade referida, mais do que demarcar um limite ou uma falha, afirma uma positividade.

No percurso de investigação acerca da cognição, parece-me bastante relevante partir das leituras de autores como Isabelle Stengers e Bruno Latour, não só por sua contemporaneidade, como também - e principalmente - pela vertigem intelectual que suas afirmações nos provocam quando apontam para um modo de pensar não amparado em a prioris, em transcendentais ou em qualquer garantia prévia, antecipável. Com relação à produção de conhecimento nas ciências, esses autores afirmam um modo de entender essa produção sem legitimá-la nos direitos da razão sobre o plano dos fenômenos, ou na aplicação de métodos racionais sobre os objetos. As garantias da racionalidade científica, tal como nos foram por tanto tempo apresentadas pela epistemologia, são questionadas em sua superioridade e autoridade. O conhecer implica redes, vínculos entre humanos e não humanos, interesses, dinheiro, poderes, alianças múltiplas e heterôgeneas. Trata-se mais de uma instabilidade no conhecer do que de garantias oferecidas de antemão. Nesse ponto somos tomados por uma vertigem. Correr o risco de se deixar levar por ela, de provocá-la sempre, é talvez um dos modos mais instigantes de estudar o conhecer.

O objetivo deste texto é mostrar a existência, nos trabalhos de Latour e de Stengers acerca das práticas científicas e do estatuto problemático da cientificidade da Psicanálise, de uma afirmação ímplicita sobre a cognição não mais legitimando-a pela referência a princípios ou métodos a prioris, invariantes, mas sim remetendo a sua inteligibilidade à rede de sua prática.

No que diz respeito às suas investigações, tanto sobre a ciência quanto sobre a Psicanálise, Stengers[1] apresenta-se numa perspectiva que não pode ser confundida com o enfoque epistemológico. A epistemologia consiste num certo modo de entender as ciências cuja referência é a sua factualidade empírica, sua positividade. O foco de atenção aqui é dirigido ao caráter autóctone dos princípios que se dá uma ciência e ao caráter singular de sua montagem teórica. Enquanto numa visada reflexiva, as ciências são tomadas como exemplo de uma razão homogênea e abstrata, no estilo epistemológico o que está em jogo é a maneira singular pela qual uma ciência constrói seus princípios, suas regras, sua racionalidade[2]. Nesse sentido, podemos dizer que só há epistemologia positivista, ou que só há epistemologia a partir do positivismo, entendendo este termo num sentido genérico como a decisão radical de só reconhecer pertinência nas proposições da ciência empírica positiva. A epistemologia assim entendida é sempre demarcacionista, isto é, distingue radical e normativamente ciência e não ciência, o que resulta numa caracterização da primeira como um domínio autonômo e singular.

Na tradição de Bachelard, a epistemologia se constitui em torno do não, da ruptura, de modo que a razão científica caminha negando a opinião, rompendo com a inércia dos hábitos. O termo ruptura epistemológica tem a função estratégica de estabelecer uma dinstição entre a ciência e o que a precede. Assim, é produzido um domínio conceitual independente, autonômo em relação ao que é negado. Num enfoque desse tipo uma ciência se funda a partir do não que diz aos saberes da opinião e é esse não que, em si, dá à ciência em questão o seu valor, o seu privilégio. Aqui o conceito é o juiz: é o que permite demarcar a fronteira entre o que lhe é próprio e os campos da opinião, das demais práticas.

A epistemologia, ao descartar do discurso científico tudo o que é da ordem da opinião, da ideologia, do senso-comum, inviabiliza qualquer tipo de contra-argumentação às suas demarcações, já que tais contra-argumentações são, elas também, oriundas do senso-comum, ou seja, do resto da atividade científica. Assim, tomando a psicanálise como exemplo, não é pertinente estabelecer qualquer aproximação entre a cura no sentido empírico e a cura psicanalítica, porque o empírico enquanto tal não pode pôr em questão uma distinção de ordem conceitual. Daí então a conclusão de que uma leitura epistemológica da atividade científica, quando tenta formalizar e mesmo corrigir os critérios a partir dos quais se pode obter uma definição formal do que faz uma ciência ser ciência, supõe uma referência a um poder de julgar mais lúcido, mais coerente, mais racional e, por isso mesmo, transcendente. A racionalidade do conceito justifica e legitima a prática.

Diferentemente disso, Stengers não fala da ciência em nome de qualquer princípio a priori, o que está em jogo é analisar como uma prática produz uma certa racionalidade. Stengers pretende estabelecer uma leitura política das práticas científicas, e isso significa dizer que a distinção entre ciência e não ciência não é tomada como ponto de partida. A autora pretende criar um espaço problemático onde a construção da diferença entre ciência e não ciência pode ser seguida, acompanhada no âmbito mesmo da prática. Não há de saída uma concepção prévia acerca do que é uma ciência; o ponto de partida é sempre simétrico, isto é, coloca num mesmo plano ciência e não-ciência, sendo o problema então mostrar como se constrói tal distinção. Há uma dimensão política inerente, constitutiva à atividade científica. Política no sentido de referir a ciência à rede de sua prática, de forma que é dessa prática, com tudo que ela comporta de inventivo e contingente, que se constrói tanto o objeto a ser conhecido pela ciência quanto o seu modo de inteligibilidade.

A perspectiva de Stengers acerca da ciência encontra ecos nos trabalhos de Bruno Latour. Segundo este autor, o enfoque epistemológico das ciências é amparado pelo projeto que constitui a modernidade e que consiste em práticas de purificação que criam zonas ontológicas distintas: aquela dos humanos e a dos não-humanos, de tal modo que o problema da modernidade é produzir, através de uma racionalidade dada, uma certa inteligibilidade do real. No entanto, tal tarefa se vê permanentemente abalada e interrogada pela emergência de objetos não redutíveis inteiramente ao domínio do sujeito nem ao domínio dos objetos. São híbridos, misturas indissociáveis de natureza e cultura, quase-objetos, quase-sujeitos. Tomando um exemplo do próprio Latour[3], cada vez que desejo falar com a minha velha mãe no telefone, eu fortaleço, ao mesmo tempo, a companhia telefônica. Há neste caso uma aliança tão forte entre humanos - eu, meu desejo de falar com minha mãe, etc. - e não-humanos - cabos, satélites, eletricidade, cobre, fibras óticas, etc - que não nos é possível purificar nessa aliança um dado essencialmente humano, subjetivo e outro essencialmente objetivo. Dito de outro modo, há um híbrido, um misto indissociável de sujeito e objeto, sendo, portanto, problemática a possibilidade de estabelecermos explicações reducionistas, sejam elas de tipo natural, sejam de tipo sociológico ou psicológico. A emergência de tais híbridos, ao contrário de ser uma exceção, um resíduo, é tudo o que há. Todo embate da modernidade consiste em tentar fazer com que os híbridos sejam reduzidos a uma das duas zonas ontológicas que lhes são constitutivas. Afirmar que tudo o que há são quase-objetos, quase-sujeitos significa questionar o projeto moderno, e mesmo radicalmente, tal é a proposta do autor, dizer que jamais fomos modernos no sentido em que pensávamos que pudéssemos ser, isto é, apoiados naquela dicotomia ontológica. Partindo dessa perspectiva, Latour afirma ser impossível falarmos de objetos técnicos purificados, isentos de qualquer determinação humana. Os objetos técnicos são na verdade dispositivos que mesclam um número tão grande de humanos quanto de não humanos. Como então falarmos dessas tramas de sujeitos-objetos? O conceito de rede é a esta altura indispensável.

Afirmar que tudo são híbridos é afirmar uma ontologia que não se encaixa no dualismo moderno. A ontologia é híbrida num sentido irredutível, isto é, não se trata de purificar num objeto o que ele tem de humano, nem de purificar no humano o que ele tem de vínculos com os objetos. A noção de rede de atores fala desse plano de conexões heterogêneas a partir do qual emergem tanto as ciências quanto as crenças, as religiões, etc. Numa entrevista concedida em 1993, Latour[4] prefere utilizar a palavra actantes no lugar de atores para despir tal noção de seu cunho personalístico, subjetivista. Actantes são coisas, pessoas, instituições que têm agência, isto é, produzem efeitos no mundo e sobre ele. Tal noção não remete a nenhuma entidade fixa, mas a fluxos, circulações, alianças, movimentos. A noção de rede de atores não é redutível a um ator sozinho nem a uma rede. Ela é composta de séries heterogêneas de elementos, animados e inanimados conectados, agenciados. Por um lado, a rede de atores deve ser diferenciada dos tradicionais atores da sociologia, uma categoria que exclui qualquer componente não-humano. Por outro lado, a rede também não pode ser confundida com um tipo de vínculo que liga de modo previsível elementos estáveis e perfeitamente definidos, porque as entidades da quais ela é composta, sejam elas naturais, sejam sociais, podem a qualquer momento redefinir sua identidade e suas mútuas relações, trazendo novos elementos para a rede. Neste sentido, uma rede de atores é simultaneamente um ator cuja atividade consiste em fazer alianças com novos elementos, e uma rede que é capaz de redefinir e transformar seus componentes[5].

Neste ponto é importante que utilizemos a noção de rizoma proposta por Deleuze e Guattari[6] para pensarmos as características da rede, e é o própro Latour quem nos autoriza essa utilização quando afirma que “rizoma é uma palavra perfeita para rede”[7].Vejamos, pois, quais são as características de um rizoma para, em seguida, pensarmos o que seria uma rede entendida como um rizoma. Um rizoma apresenta-se pelas seguintes características:

Princípio de conexão e heterogêneidade: numa multiplicidade, qualquer ponto se conecta com qualquer outro, ela não tem princípio nem fim.

Princípio de multiplicidade: o múltiplo, tratado como substantivo, não tem nenhuma relação com o uno, seja este sujeito seja objeto. O múltiplo não deriva do uno. Não há aqui uma unidade de medida, um padrão a ser seguido, há variedades de medidas.

Princípio de ruptura a-significante: diferentemente dos cortes demasiado significantes que separam as estruturas, um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer e ser retomado segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas, pois um rizoma comporta direções móveis.

Princípio de cartografia e decalcomania: um rizoma não pode ser explicado por nenhum modelo estrutural, genético ou gerativo. Desta noção de eixo genético ou estrutura profunda, podemos dizer que ela remete a princípios de decalque, isto é, reprodutíveis ao infinito, semelhante a uma repetição de elementos-chave. Trata-se neste caso de uma lógica da reprodução ou do decalque que Deleuze e Guattari chamam lógica da árvore. O rizoma é mapa e não decalque. O mapa não repete nem reproduz estruturas já dadas, ele as constrói. Cito os próprios autores:

“O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como meditação. (...) Um mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre ao mesmo.” (Deleuze, G. & Guattari, 1995, p.22.)

Pensar a rede de atores como um rizoma nos permite, portanto, dizer que nela é possível a conexão de qualquer ponto com outro, ela não tem princípio, nem fim. Não há em seu âmbito nenhuma referência a uma unidade já dada, poderíamos aqui dizer que não há referências sobrecodificadoras a respeito do que se passa no plano da rede. Embora uma rede possa ser rompida em qualquer ponto, ela sempre retoma. Por isso não é possível demarcar cortes, rupturas a partir de critérios de racionalidade estabelecidos fora da rede. Uma rede é um mapa e não um decalque, quer dizer, a rede de atores é aberta, heterogênea de modo que a princípio é possível estabelecer todo e qualquer tipo de conexão, sem que seja uma necessidade de direito a redundância de elementos-chave. Na linguagem de Latour podemos dizer que rede é sinônimo de híbridos, de quase-objetos; em outras palavras, a rede é o plano ontológico no qual os quase-objetos se situam. Enquanto a lógica da modernidade, assim como a da epistemologia, é a lógica do decalque, a lógica da rede é aquela do mapa. Sujeito e objeto não são pólos dados de antemão, mas construções possíveis no plano da rede. Ao tratar das ciências, Latour afirma um enfoque antropológico das ciências e das técnicas, não entendendo a palavra antropologia na sua referência ao antropos-homem, mas no estranhamento que comportam as pesquisas antropológicas das outras civilizações. É o caso aqui de nos tornarmos outros, híbridos de natureza e cultura. Além disso, com a palavra antropologia é importante frisar o sentido empírico, concreto de suas investigações. As ciências e as técnicas são investigadas no seu modo de construção, na rede de sua prática. Se na perspectiva epistemológica o empírico não tinha o poder de questionar uma distinção conceitual, aqui o domínio racional é efeito de uma prática, é imanente, intrínseco ao plano no qual ele se constrói. Retorno da potência do empírico, de sua inventividade e engenhosidade. Empírico não é sinônimo de indiferenciação. A rede de atores, em sua concretude, comporta diferenciações, ela é o plano onde serão construídas as distinções entre práticas científicas e práticas não-científicas. Entretanto, tais distinções não são justificadas a partir de um método racional. Elas não são a priori, mas a posteriori. É preciso acompanharmos concretamente o modo como elas se constróem, se inventam, se produzem.

Uma rede, como um mapa, tem múltiplas entradas, por isso tratar da distinção entre ciência e não-ciência é uma questão de entrada na rede, não é uma escolha já marcada de antemão. Latour chama princípio de simetria a essa multiplicidade de entradas que uma rede comporta. Simetria porque não há uma entrada mais racional, mais coerente do que outra, pois isso seria próprio da lógica do decalque. Ciência e não-ciência são pontos da rede, como seus nós. O problema é acompanhar a construção dessa distinção e não pré-julgá-la. Existem assimetrias na rede, mas elas são construídas, são efeitos e não pontos de partida. Assim, há uma assimetria na relação entre ciência e não-ciência, mas essa demarcação longe de ser pré-estabelecida, é efeito de embates e negociações intrínsecos à rede.

A atividade científica consiste numa certa aliança entre humanos e não-humanos. Não há cientista isolado, trancado em seu laboratório ou enclausurado em suas definições operacionais. A ciência se constrói como rede que conecta homens, máquinas, financiamentos, rancores, amores, invejas, ... O que lhe é próprio é que, em sua produção, alguns dispositivos experimentais, ou conjunto de conhecimentos, são tomados como dados, estáveis ou como diz Latour, são colocados em caixas pretas[8]. Tais caixas guardam um conjunto de dispositivos teórico-experimentais que conferem um sentido unívoco a certos dados, elas são forças ou interesses que confinam alguns conhecimentos. A embriogênese pode nos servir para pensar a caixa preta a partir de uma metáfora. Nos primeiros momentos de fertilização, todas as células são semelhantes. No plano de sua epigênese, alguns trajetos vão sendo interrompidos, de modo que uma diferenciação celular vai se construindo. Como conseqüência do processo de construção, alguns domínios são tomados como pontos de passagem obrigatórios para o crescimento e desenvolvimento do organismo. A caixa preta funciona como esses pontos de passagem obrigatórios construídos pelas ciências. Dito de outro modo, uma caixa preta opera uma substituição das diferenças provisórias próprias das redes por elementos e dispositivos tomados como seguros, duráveis, estáveis. Quanto mais uma ciência fecha caixas pretas, tanto mais estável ela se torna, tanto mais os conhecimentos por ela produzidos são tomados como pontos de passagens obrigatórios. Fechar caixas pretas significa produzir assimetrias. As ciências se diferenciam das demais práticas pelo número de conexões entre humanos e não-humanos que elas estabelecem e pelo número de caixas pretas que elas fecham. Assim, essa distinção é construída, fabricada, e a posteriori. Ela não está ancorada em nenhum ideal de racionalidade que escapasse ele mesmo desta fabricação. A análise de Latour toma a perspectiva simétrica como ponto de partida para acompanhar o modo como tais assimetrias são construídas. A distinção entre ciência e não-ciência é negociada na rede, ela não é dada de uma vez por todas. Ciência, crença, religião, arte, ... são nós da rede, modos diferenciados de estabelecer alianças segundo critérios que são sempre intrínsecos à rede, inerentes a seu plano.

Uma caixa preta como nó de uma rede comporta sempre um ponto vazante, uma abertura através da qual ela pode ser desfeita, desconstruída. É certo que uma tal desconstrução é pouco provável porque implica investimentos de alto custo: “a quem interessaria abrir a caixa preta do DNA?”, “quem financiaria um projeto desse tipo?” Além disso, abrir uma caixa preta implica remontar às condições iniciais de sua construção o que seria possível apenas se a rede fosse composta por relações lineares de causalidade. No entanto, vale enfatizar que, embora improvável, a abertura de uma caixa preta é possível. Esse ponto não pode ser negligenciado sob o risco de deixarmos passar despercebido o caráter de instabilidade e incerteza intrínseco à ciência. Instabilidade que pode ser remetida à própria noção de rede à medida que ela não tem direções previsíveis e que, ao mesmo tempo, se dobra no coração da ciência, isto é, nos seus métodos, nos seus princípios de inteligibilidade. Lançar um olhar simétrico sobre as ciências e suas práticas significa nos colocarmos nesses pontos de incerteza, de possibilidade de diferir, ponto de cruzamento entre a produção científica e a sua fabricação. Correr os riscos de estarmos nesse lugar, de pesquisarmos sem termos as respostas como garantias prévias, eis o que Latour nos convida a fazer.

Como nó de uma rede, uma ciência é caracterizada por uma polifonia, uma heterogêneidade que, longe de ser um atributo, uma qualidade que lhe é atribuída, é o que ela tem de substantivo. A novidade desse pensamento consiste em encontrar um lugar para os não-humanos, consiste em substantivar os seus testemunhos. Latour fala em parlatório das coisas para dar conta dos híbridos; parlatório no duplo sentido de que eles têm voz e de que eles próprios produzem os critérios de sua inteligibilidade.

Chegamos aqui a um ponto decisivo. Embora Latour não apresente uma tese específica acerca da cognição, subjaz em seu trabalho uma afirmação sobre o que vem a ser a cognição. Porque, se a rede é uma ontologia, não podemos pensar num domínio que lhe seja exterior, no sentido de uma transcendência. Se a cognição não fosse ela própria entendida como um nó na rede, poderíamos retomar um dualismo do tipo cognição X rede, e, se este fosse o caso, a rede seria apenas um objeto de conhecimento. Partiríamos de uma crítica da modernidade, para reformularmos no final das contas, a dicotomia que lhe é constitutiva, a saber, a dicotomia sujeito X objeto. Não é esta a proposta de Latour. Não se trata de substituir um dualismo por outro do tipo cognição X rede. O que está em jogo é a afirmação do real como experimentação e fabricação, de forma que a dicotomia moderna longe de ser raivosamente negada, passa a ser, ela própria, um efeito desta atividade fabricadora que constitui o real. A cognição, assim, é um efeito, uma fabricação que comporta alianças entre humanos e não-humanos. De atributo de um sujeito, a cognição passa a uma experimentação do real. A cognição remete a um plano heterogêneo, múltiplo composto tanto de humanos quanto de não-humanos, que são os porta-vozes das redes que os suportam.

Quais são as conseqüências que podemos extrair da noção de rede se operarmos um rebatimento de suas características sobre o próprio saber psicológico? Uma Psicologia da Cognição entendida nesse sentido não trata de estudar as leis gerais que caracterizam o funcionamento de toda e qualquer cognição. É um outro sentido de Psicologia que se descortina, uma Psicologia que poderíamos chamar de uma Estética da Cognição, entendendo aqui a palavra estética num sentido amplo de fabricação, de produção que não parte de preconceitos valorativos, ao modo de bom X mau. Dizemos estética da cognição no sentido de uma arte da imanência que só pode ser remetida ao plano de sua prática, para a partir daí nos ser possível acompanhar o modo como tal cognição se constrói. A cognição é entendida a partir de uma incerteza que não deve ser tomada como uma fraqueza, mas sim como sua potência criadora, como o que ela comporta de rede ou de rizoma. A Psicologia como saber sobre a cognição seria um nó da rede de atores e, como tal, produzido, negociado, efeito dos embates e negociações entre humanos e não-humanos. Já não se trata, como no enfoque epistemológico, de avaliar a racionalidade do saber psicológico, trata-se antes de acompanhar, no âmbito de suas práticas, suas pesquisas, o modo como uma certa racionalidade, um certo modo de inteligibilidade é produzido. Aqui a Psicologia não é interrogada quanto à legitimidade dos seus experimentos, mas quanto ao que ela produz entendida como experimentação.

Isabelle Stengers[9] parte de uma certa concepção de ciência para discutir o estatuto problemático da cientificidade da Psicanálise. A autora procura revitalizar no texto freudiano a sua intenção original que é aquela de ter fundado uma ciência. Parte-se de um ponto de vista imanente que procura acompanhar na obra freudiana o modo como está articulado o tema de sua cientificidade. Neste sentido, a questão de saber se a psicanálise é ou não ciência não é uma falsa questão; o seu vigor é intrínseco aos textos de Freud. Stengers retoma o sentido operatório embutido na palavra psicanálise, sentido que remete à química do século XIX e aos seus processos de purificação e controle. Ao abandonar a hipnose pela afirmação da transferência como motor e obstáculo do trabalho analítico, o objetivo de Freud era produzir uma doença de artificial, circunscrita à cena analítica, do mesmo modo que o químico produzia em seu laboratório elementos controlados e purificados.

Desse ponto de vista, Stengers afirma que a Psicanálise é uma ciência cuja caixa preta é a cena analítica. Mas, em 1937, é o próprio Freud quem nos adverte sobre os limites da sua técnica quando afirma que “a análise às vezes tem êxito (...) mas não invariavelmente”[10]. Ao dizer isso, Freud se situa no ponto de abertura da caixa preta criada por ele mesmo: essa talvez seja uma singularidade da Psicanálise. Stengers dirige sua análise para essa abertura, essa incerteza anunciada com a renúncia de 1937. A questão é nos interrogarmos acerca de que tipo de ciência pode advir de uma tal renúncia, do mesmo modo que a psicanálise partiu do fracasso das outras técnicas terapêuticas.

Neste ponto a tradição epistemológica já não nos serve como guia. Porque, ao fechar o conceito de inconsciente, conferindo por este recurso autonomia e superioridade ao saber psicanalítico frente aos demais tipos de cura empírica, a epistemologia funciona como um remédio que faz cicatrizar rápido demais a ferida narcísica constitutiva do sujeito, da qual falava Freud. Ao tomar a psicanálise a partir de seu não original frente às demais técnicas psicoterápicas, a epistemologia acaba por vinculá-la a uma razão específica: aquela que tem o poder de julgar tomando como critério de demarcação a noção de inconsciente. Cabe agora aos psicanalistas, herdeiros de Freud, correrem os riscos de estarem no ponto de abertura da caixa preta que os sustentava. Segundo Stengers, o depois-de-Freud só pode ser construído no domínio das práticas e dos interesses que é aquele do qual parte qualquer produção científica. A ferida narcísica aqui ganha um sentido amplo porque é referida à própria atividade científica: ela já não está mais amparada numa racionalidade dada, num conceito imune às contaminações empíricas. Correr o risco que nos inflige uma tal ferida é o caminho para a invenção tanto de uma outra psicologia da cognição quanto de uma outra prática psicanalítica. Por este caminho estaremos agenciados não a uma razão-juíza, mas a uma

“razão impertinente e criadora, perplexa e interessada, embrenhada num labirinto de histórias cujas tramas superpostas ela explora, e produzida ela mesma, por uma história a partir da qual aprende aquilo de que é capaz. Uma razão que não fundamente suas pretensões nem no medo das bruxas nem dos juízes (...)”(Chertok, L. & Stengers,1990 p.310).

Enfim, uma razão que não tenha medo da simetria, mas capaz de fabricar suas regras a partir da rede de atores na qual está inserida. Uma razão que não tema a incerteza, mas que se inventa e se fabrica no seio da incerteza.

Bibliografia

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___________ L’Invention des Sciences Modernes. Paris, La Découverte, 1993.

___________ Quem Tem Medo da Ciência. Ciências e Poderes. São Paulo, Ed. Siciliano, 1990.



Notas

[1] Cf. Stengers, I., 1992.

[2] Cf.Lebrun, G. 1977, pp. 7-21.

[3] Latour, B., 1988.

[4] Crawford, H. 1993, pp. 247-268.

[5] Cf. Callon, M. 1986, pp.83-103.

[6] Deleuze, G. & Guattari, F., 1995.

[7] Crawford, H. 1993, pp. 247-268.

[8] Cf. Callon, M. & Latour, B., 1981, pp.277-303.

[9] Stengers, I., 1992.

[10] Freud, S. 1975, p.260.

Abstract: This text deals with the notion of cognition as it is affirmed in Stengers and Latour’s work. They affirm an aesthetic of cognition in the sense of a cognition that is made in network or ryzoma, a cognition which the rules are immanent, intrinsical and, for that reason, changeable. Studying science as a ryzomatic activity the authors postulate also a ryzomatic ontology, which consequences are debated as well in Psychology as in Psychoanalysis.